Normalmente, a comemoração dos santos acontece na data da morte ou da canonização – celebramos apenas três natividades no calendário litúrgico: de Nosso Senhor Jesus, da Bem-aventurada Virgem Maria e de São João Batista. Isso porque desde os primeiros séculos, o dies natalis – o dia do nascimento para a vida eterna – era o dia do martírio de um santo, dia em que sua virtude era atestada no testemunho público e inequívoco da fé. No caso de João Batista, a Igreja celebra tanto a sua natividade com status de solenidade em 24 de junho e a memória litúrgica de seu martírio em 29 de agosto.
O nascimento de João Batista foi acontecimento agraciado, tal qual a encarnação do Verbo ou o nascimento de Maria, pois ele já nasceu com uma missão especial no plano da salvação: ser o precursor do Salvador. A Igreja canta nas laudes de seu martírio: “Logo ao nasceres não trazes mancha, João Batista, severo asceta, mártir potente, do ermo amigo, grande profeta”. O nascimento de João (cf. Lc 1,5-57) ensina que todos temos uma vocação, somos chamados à vida (vocação vem do latim vocare, chamar, convocar), ninguém é fruto do acaso, um “erro” ou indesejado por Deus. O sentido da vida depende da resposta à pergunta existencial acerca do valor da vida, se vale a pena viver.
Certamente, a vida de João Batista não foi fácil, ele vivia no deserto alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, pregando um Batismo de conversão (cf. Mt 3,1-6). Sua pregação incomodou o rei Herodes Antipas e Herodíades, culminando em sua prisão e morte decapitado (cf. Mc 6,25). A atividade profética de João Batista às margens do Jordão, embora desafiadora e cheia de sacrifícios, rendeu muitos frutos. Às vezes pensamos que o sentido da vida só pode ser obtido quando alcançamos a felicidade ou galgamos realizações tangíveis, uma promoção, a aquisição de um bem desejado, conforto, mas o sentido da vida também pode ser encontrado no sofrimento. Escreve Viktor Frankl: “Não há sentido apenas no gozo da vida, que permite à pessoa a realização na experiência do que é belo, na experiência da arte ou da natureza. Também há sentido naquela vida que – como no campo de concentração – dificilmente oferece uma chance de se realizar criativamente e em termos de experiência, mas que lhe reserva apenas uma possibilidade de encontrar o sentido da existência, precisamente na atitude com que a pessoa se coloca face à restrição forçada que se fora sobre seu ser. (…) Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento o tem, o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas o sofrimento faz parte da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. Aflição e morte fazem parte da existência como um todo”¹.
João Batista pregava um Batismo de conversão e de confissão/remissão dos pecados, para que o povo de Israel abandonasse as obras das trevas e abrisse os corações para um futuro novo, para a vinda do Messias e Salvador. Celebrar o nascimento e a morte de João Batista é compreender que o último dos profetas não viveu para si, mas para Deus e os irmãos, sua vida foi um genuíno dom. A vida só tem sentido quando nos abrimos, quando alargamos os horizontes e deixamos de pensar apenas em nós, quando não nos autocentramos, mas queremos anunciar e revelar o rosto de Cristo. Por isso João Batista foi exemplo de humildade, colocando-se sempre em segundo plano, como ele mesmo disse: “É necessário que Ele cresça e que eu diminua” (Jo 3,30)². O sentido da vida não está no engrandecimento do self, de nossa autoimagem, mas no esvaziamento até a entrega amorosa por um projeto de amor.
No século XVII, Caravaggio pintou um quadro famoso retratando a decapitação de João Batista, com Salomé segurando uma bandeja de ouro, pronta para receber sua cabeça – a bandeja de ouro, o item que se destaca na escuridão da tela barroca ao lado do manto vermelho, reflete o valor e a preciosidade da vida de São João, da vida dos mártires que mesmo na morte brilharam a glória de Deus.
Referências
¹ FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. São Paulo: Vozes, 1991, p. 50.
² CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. Tradução de Daniel de Oliveira e Daniel Costa. São Paulo: Custom, 2002. pp. 44-51.