O versículo inicial destaca que Jesus estava em oração: “Um dia, num certo lugar, estava Jesus a rezar” (Lc 11,1). Lucas, mais do que os outros evangelistas, sublinha com frequência a prática orante de Jesus. Essa cena não é apenas introdutória, mas expressa um dado fundamental: a oração de Jesus é a fonte de sua missão e é esse relacionamento com Deus que desperta nos discípulos o desejo de aprender a rezar. A oração é apresentada como hábito constante de Jesus e momento decisivo de discernimento. O pedido “Senhor, ensina-nos a orar” revela a consciência da comunidade lucana sobre a necessidade de formação na fé e na vida espiritual, em continuidade com a tradição judaica.
A resposta de Jesus é o ensinamento do Pai-Nosso, numa forma breve e direta, com cinco petições (em vez das sete de Mateus). O uso do termo “Pai” (Abbá) no início (cf. v. 2) é teologicamente decisivo. Ele expressa não apenas uma fórmula de tratamento, mas a radical novidade da relação que Jesus vive com Deus e convida os discípulos a assumirem. É um Pai que está próximo, acessível e que sustenta a existência com misericórdia e fidelidade.
A primeira petição – “Santificado seja o vosso nome” – remete à santidade de Deus como mistério e como missão. Santificar o nome de Deus não é apenas uma adoração verbal, mas um chamado para que, por meio da vida dos discípulos, o nome de Deus seja reconhecido no mundo. Já a segunda petição – “Venha o vosso Reino” – resume toda a esperança escatológica de Israel e a pregação de Jesus. Em Lucas, o Reino é realidade que se aproxima na pessoa de Cristo e que deve ser acolhida com fé e conversão.
A terceira petição – “Dá-nos hoje o pão necessário ao nosso sustento” – sublinha a dimensão cotidiana da confiança em Deus. O vocábulo grego “epiousios” (traduzido como “de cada dia” ou “necessário”) reforça a ideia de sustento diário. Acentua a dependência constante e renovada do cuidado divino. O “pão” não é apenas o alimento físico, mas símbolo da sustenção total: o necessário para viver, agir e esperar.
A quarta petição – “Perdoai-nos os nossos pecados, pois também nós perdoamos àqueles que nos ofenderam” – destaca a reciprocidade do perdão como chave da vida comunitária. Em vez de “ofensas” como em Mateus, Lucas fala diretamente de “pecados” (“hamartías”) e de (“opheílonti”), significando “devedor – aquele que deve”, aproximando culpa moral e relações sociais. O perdão recebido de Deus não pode ser separado do perdão oferecido ao próximo. O termo “pecado” assume aqui um duplo registro: pessoal (falta moral) e social (injustiça). O perdão é uma exigência ética e espiritual.
A última petição – “E não nos deixes cair em tentação” – expressa a consciência da fragilidade humana diante do mal. Em Lucas, a tentação aparece como realidade presente, associada à vigilância e à oração (cf. Lc 22,40.46). A súplica pede o auxílio divino para permanecer fiel diante das provações, ecoando a experiência de Jesus no deserto (Lc 4,1-13).
A oração do Pai-Nosso em Lucas, com sua forma concisa, é uma síntese da espiritualidade cristã primitiva. Ela forma os discípulos na confiança radical em Deus, na fraternidade reconciliada e na vigilância ativa diante da história. O pedido dos discípulos não é apenas um gesto de aprendizado, mas o início de uma caminhada orante, que se desdobra em todo o capítulo 11 com ensinamentos sobre a perseverança na oração e a bondade do Pai que escuta. Conforme observa Santo Agostinho, “A oração do Pai-Nosso é a mais breve, mas contém todo o Evangelho”.
A sequência do capítulo (cf. Lc 11,5-13) aprofunda a temática da oração insistente e confiante, revelando a bondade do Pai celeste.
Referências bibliográficas
AGOSTINHO. Comentário ao Sermão da Montanha e outras obras. Tradução Raimundo Vier. São Paulo: Paulus, 2003.
BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004.
FITZMYER, Joseph A. O Evangelho segundo Lucas (I–IX): introdução, tradução e comentário. São Paulo: Loyola, 1991. (Série Comentário Bíblico)
HARRINGTON, Daniel J. Evangelho segundo Lucas. In: COMISSÃO BÍBLICA DA CNBB. Comentário Bíblico São Jerônimo. São Paulo: Paulus, 2005. pp. 1194–1247.