O Evangelho de Lucas, frequentemente chamado de “o Evangelho da misericórdia”, apresenta uma teologia profundamente marcada pelo amor compassivo de Deus, especialmente em favor dos marginalizados e pecadores. Diferentemente de outros evangelistas, Lucas estrutura sua narrativa de modo a enfatizar a universalidade da salvação e a graça divina que se estende a todos, inclusive aos excluídos da sociedade judaica do primeiro século.
Lucas não apenas descreve a misericórdia como uma ação divina, mas como uma dimensão essencial do próprio Deus. O termo grego “ἔλεος” (“eleos”), frequentemente utilizado, remete à compaixão ativa, não apenas um sentimento, mas uma intervenção da graça. Essa misericórdia é apresentada desde o início do Evangelho, como no cântico de Maria – “Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre os que o temem” (Lc 1,50) – e no Benedictus de Zacarias (cf. Lc 1,78), em que a vinda do Messias é associada à “ternura do coração de nosso Deus”.
A misericórdia divina em Lucas não é meritocrática, mas graciosa e incondicional, como visto na parábola do Pai Misericordioso (cf. Lc 15,11-32), na qual o pai corre ao encontro do filho antes mesmo que este complete seu discurso de arrependimento. A ênfase não está no pecado do filho, mas no amor inesgotável do Pai, que reflete a natureza de Deus.
Lucas agrupa parábolas no capítulo 15, todas respondendo à crítica dos fariseus de que Jesus “recebe pecadores e come com eles” (Lc 15,2).
- A ovelha perdida (cf. Lc 15,4-7): enquanto Mateus (cf. 18,12-14) enfoca a responsabilidade pastoral, Lucas destaca a alegria divina no resgate. O pastor deixa as 99 ovelhas no deserto (local perigoso), mostrando que Deus assume riscos pelo perdido.
- A moeda perdida (cf. Lc 15,8-10): a mulher, símbolo da sabedoria divina (cf. Pr 8), varre a casa até encontrá-la. A imagem sugere que Deus busca ativamente mesmo o que parece insignificante.
- O pai misericordioso (cf. Lc 15,11-32): o filho mais novo, ao pedir herança, pratica um ato equivalente a desejar a morte do pai (cf. Dt 21,17). No entanto, o pai não o condena, mas o restaura plenamente. O filho mais velho representa a posição dos fariseus, que não compreendem a alegria do perdão.
- A parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37): o sacerdote e o levita evitam o homem ferido por motivos legais, rituais (cf. Lv 21,1-3), mas o samaritano, considerado herege, age com compaixão prática (“σπλαγχνίζομαι”, “splanchnizomai”), investindo seus recursos. Jesus redefine o “próximo” como aquele que pratica misericórdia, não aquele que cumpre a lei ritualisticamente.
ENCONTROS DE MISERICÓRDIA
- A pecadora que unge os pés de Jesus (cf. Lc 7,36-50): Simão, o fariseu, julga a mulher por seu passado, mas Jesus a defende, destacando que “seus muitos pecados lhe são perdoados porque muito amou” (v. 47). O perdão não é consequência do amor, mas o amor é a resposta ao perdão já recebido.
- Zaqueu (cf. Lc 19,1-10): como cobrador de impostos, Zaqueu era visto como traidor, no entanto, Jesus o chama pelo nome e se hospeda em sua casa, desafiando as convenções. A resposta de Zaqueu – restituir quadruplicado – mostra uma conversão autêntica, fruto da misericórdia recebida.
- O bom ladrão (cf. Lc 23,39-43): enquanto um criminoso blasfema, o outro reconhece sua culpa e clama por misericórdia. Jesus não exige reparações, apenas fé: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (v. 43).
MISERICÓRDIA E DISCIPULADO
Jesus ordena: “Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Em Lucas, a misericórdia não é opcional, mas essência do seguimento de Cristo. Isso se expressa em:
- perdão incondicional (cf. Lc 17,3-4);
- preferência pelos pobres (cf. Lc 14,12-14);
- acolhida aos excluídos (cf. Lc 14,21-23).
Lucas nos mostra que a misericórdia verdadeira não faz cálculos, é sem condicionamentos, não faz contas, arranca-nos da comodidade e nos lança às estradas onde os feridos agonizam, porque só quem foi alcançado pela graça sabe curar sem exigir atestados de moralidade.
Eis o chamado e desafio que ecoa através dos séculos: deixar que esse amor nos incomode, desinstale, faça-nos levantar da mesa quando o mundo preferir julgar, condenar, isso não por obrigação, mas – uma vez tocados e sensibilizados por esse abraço – por amor, um amor que liberta, dignifica.