A FAMÍLIA DE SANTA TERESINHA

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A família de Santa Teresinha tinha todos os ingredientes para não dar certo: os pais, quando se casaram, tinham certa idade, mal se conheciam e tinham desejos frustrados. Luís Martin, homem bom, fechado, relojoeiro, desejava ser monge no mosteiro de São Bernardo, escondido entre as neves dos montes, mas foi dispensado só porque não conhecia latim. Zélia Guerin, uma modesta empresária das “rendas de Alençon”, mulher boa, invejava a sua irmã religiosa Visitandina e desejava ser religiosa vicentina, mas sem mais nem menos foi-lhe dito na cara que não pensasse nisso, porque não tinha vocação. Houve assim um casamento “meio arranjado” pela mãe de Luís Martin, preocupada em ver sozinho seu filho, quase quarentão.

No Matrimônio, duas visões contrárias: Luís Martin queria viver um Matrimônio casto, “irmão e irmã”, e Zélia doidinha para ter muitos filhos. Um diretor espiritual sábio lhes recorda que a finalidade do Matrimônio são os filhos e o problema está resolvido.

A dor sempre esteve presente na vida de Luís e Zélia. Na família Martin, dos nove filhos que tiveram, quatro morreram em idade infantil; as quatro filhas que sobreviveram tiveram uma infância frágil, marcada pela doença, especialmente Teresinha e Leônia. A morte prematura da mãe por câncer, quando a pequena Teresa tinha 4 anos e meio, obrigou o pai a deixar Alençon, França, e se estabelecer em Lisieux, no mesmo país. Por que essa mudança?

Mudaram-se para Lisieux para estar mais perto do seu cunhado Isidoro, farmacêutico considerado bom administrador e o intelectual da família. Zélia tinha muita confiança nele e antes de morrer pediu que tivesse particular atenção à educação de suas filhas.

Foi grande a dor das filhas em ver, nos últimos anos de vida, o pai internado no hospital São Salvador, hospital de loucos; nos momentos de sua loucura, ele pegava o revólver e dizia que queria defender suas filhas. Uma família provada como a família bíblica do velho Jó, mas sempre enraizada na fé e no amor a Deus.

Luís Martin era uma pessoa boa, terna, delicada, voltada à religião e à família, amava viajar e nem sempre tinha o tino de educar as filhas e de corrigi-las na idade da “juventude”. A História de uma alma, que mais tarde Teresa do Menino Jesus escreverá, para “que não se perdessem as lembranças familiares”, como dizia especialmente sua irmã e sua própria Madre Inês, deixa-nos o elogio mais belo de seus pais: “O bom Deus me deu um pai e uma mãe mais dignos do Céu que da Terra”.

POR QUE A FAMÍLIA MARTIN DEU CERTO?

É necessário que nos perguntemos por que hoje muitas famílias não dão certo. Matrimônios que se desfazem com facilidade, ao primeiro vento de dificuldades, e aos primeiros dissabores… Filhos que declaram abertamente que não se sentem amados pelos seus pais e não amam seus pais… Famílias onde existe uma “plurirreligiosidade”, que não conseguem conviver e que criam situações de difícil convivência. Não é mistério para ninguém, mas se tornou lugar comum e repetitivo que a família “está em crise”. Todos os sociólogos, psicólogos, pastores, bispos e sacerdotes fazem análises da situação familiar e tentam dar respostas que são como “esparadrapos” colocados na ferida aberta, na carne viva, que não curam; podem aliviar a dor, mas não curam totalmente.

A Igreja é consciente disso e o Papa Francisco, com o Sínodo sobre a Família, junto com os bispos do mundo inteiro, procurou analisar a situação e buscar remédios, assim nos deu o belíssimo documento Exortação Apostólica Pós-sinodal Amoris Laetitia, onde se traçam linhas de uma nova pastoral, que custa a pegar o voo e a dar frutos.

Luís e Zélia Martin foram beatificados no dia 19 de outubro de 2008, em Lisieux, quando e o Cardeal Saraiva disse: “A vocação ao Matrimônio é vocação juntos à sanidade”. É o primeiro casal da história da Igreja a ser “beatificado junto”. Como esposos que percorreram juntos o caminho da santidade, foram canonizados, isto é, proclamados santos, no dia 18 de outubro de 2015, no fechamento do Sínodo sobre a Família.

OS QUATROS CAMINHOS

Se nos aproximarmos em silêncio para escutar o eco da família Martin, podemos perceber o segredo de por que esse Matrimônio, que tinha tudo para não dar certo, teve sucesso e se transformou em modelo para todos os casais de todos os tempos. O amor matrimonial ultrapassa a idade, a juventude, a doença e mesmo a morte. Ele se enraíza num amor terno e eterno, que é o amor com que Deus nos criou e nos chamou a vida para que nós fossemos fonte de vida.

  1. O amor recíproco, que gera respeito pelo outro, que deixa a liberdade e que nunca se impõe com força, foi sempre presente no relacionamento de Luís e Zélia. Eles estão convencidos que juntos são chamados à santidade, a realizar o projeto de Deus. Não podem viver a vontade de Deus “separadamente”, mas juntos. Não podem educar os filhos, dom de Deus, “separadamente”, mas juntos. Estão profundamente convencidos de que juntos podem ser testemunhas visíveis de fé e de adesão à Igreja no ambiente, muitas vezes hostil, em que vivem, na pequena cidade de Alençon.

“Com tal natureza, se eu tivesse sido criada por pais sem virtude ou até, como Celina, tivesse sido mimada por Luísa, eu teria ficado muito ruim e, talvez, tivesse me perdido. Mas Jesus velava sobre sua pequena noiva. Quis que tudo se encaminhasse para seu bem, até os defeitos que, reprimidos cedo, serviam-lhe para crescer na perfeição.” (Santa Teresinha, MA 8v)

  1. Transformam a própria casa numa “Igreja doméstica”, antecipando, por mais de cem anos, o Concílio Vaticano II. Para eles o domingo é o dia do Senhor. Luís e Zélia preferem perder “dinheiro”, mas nos domingos e nos dias de festa o negócio deles fica fechado. Vão juntos à igreja e se dedicam a obras de caridade com as filhas maiores, que já entendem o agir dos pais. O Papa Francisco, na sua mensagem à Semana Litúrgica na Itália, falou da urgência de recuperar o sentido sagrado do domingo, dia da ressurreição e da Eucaristia.
  2. Rezam e ensinam a rezar. Ao lermos as 218 cartas de Zélia, damo-nos conta de que não há nenhuma em que ela não se preocupa com a educação de suas filhas e como sentem a morte dos que Deus “chama ao Céu” antes do tempo. Em tudo veem a vontade de Deus. Zélia e Luís participam juntos da primeira Missa na igreja paroquial antes de se entregarem seja ao trabalho, seja aos afazeres da casa. Reza-se em família, leem-se livros bons e estimula-se a missionariedade, ajudando com a oração e boas ofertas os missionários. A casa dos Martins é casa de “sacerdotes”, que passam por Alençon antes e depois por Lisieux. Esse vínculo da oração vai aumentando na medida em que as filhas tomam a decisão de serem consagradas no carmelo. Apoiam as vocações, estimulam-nas, mas não impõem nem de um lado e nem do outro, respeitam.

“Quando o pregador falava de Santa Teresa, papai inclinava-se para mim, dizendo baixinho: ‘Escuta, minha rainhazinha, ele fala de tua santa padroeira’. Eu escutava, com efeito, mas olhava mais vezes para papai que para o pregador. Sua bela fisionomia dizia-me tantas coisas! Por vezes, seus olhos se enchiam de lágrimas, as quais ele em vão se esforçava por reter; não parecia mais ser da terra, de tal modo sua alma gostava de mergulhar nas verdades eternas.”(Santa Teresinha)

Escutar e dialogar: na família Martin se sabe escutar e dialogar. Creio que esse é o segredo porque o Matrimônio deu certo e a educação dos filhos não foi deixada ao léu, mas programada por Zélia e Luís. Eles têm consciência de que os filhos são dons de Deus e que não são nossa “propriedade privada”, devemos educá-los para que possam enfrentar a vida com coragem. Santa Teresinha, mais tarde, usa uma comparação muito interessante: “Os passarinhos aprendem a cantar escutando os próprios pais e estes, quando eles têm medo de voar, empurram-nos pata fora do ninho para que possam começar a própria vida”. O Papa Francisco, na Carta Apostólica Patris Corde, sobre São José, recorda que “Ser pai não é colocar no mundo filhos, mas educá-los para a vida”. Os primeiros catequistas não são os catequistas da paróquia, mas os pais. São eles que, com a vida, têm o dever de ensinar os caminhos da fé. Os pais de Santa Teresinha escutam, dialogam, ensinam. Três verbos que não podemos esquecer. Hoje em dia, temos perdido a alegria de “perder tempo com os outros”, de escutar, dialogar e ensinar.

“Este ano hei de ir [no dia 8 de dezembro], bem cedinho, ter com a Santíssima Virgem. Quero ser a primeira a chegar. Não lhe pedirei mais filhinhas; rogar-lhe-ei somente que faça santas as que me deu e que eu não lhes fique muito atrás; mas é necessário que elas sejam bem melhores do que eu.” (Carta de Santa Zélia)

E hoje?

Chegando ao fim do nosso caminho, porque o espaço que me foi concedido é pequenino, mas suficiente, podemos dizer: é urgente que os pais assumam com coragem a própria missão, não visando à própria alegria e interesses, mas ao bem dos filhos; eles são o tesouro escondido no “campo” que lhes foi confiado para conservá-lo e para fazer frutificar os talentos. A família não está em crise na sua visão bíblica, teológica e espiritual, o que está em crise são os humanos que se preocupam com si mesmos, com sua própria felicidade egoísta e não com a felicidade dos outros. Não se pode ser feliz sozinho, mas juntos. Se isso é verdade para todos, muito mais é a verdade das verdades para as famílias. Os pais que se preocupam com si mesmos, esquecendo os filhos, à primeira dificuldade ou desentendimento pensam em se divorciar, separar. Os pais que se preocupam com a felicidade dos filhos, ainda nas dificuldades, rezam, tomam conselhos e retomam o caminho com esperança, amor e alegria, espelhando-se na felicidade dos filhos.

Frei Patricio Sciadini, ocd

Autor dos livros Deus é luz e Deus é noite, Jesus, quero escutar tua voz, Rosas de amor, Só Deus basta e As fundações de Santa Teresa de Ávila.

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