PARA 2,3% DOS PAIS NO BRASIL, O DESAFIO DE CUIDAR E EDUCAR É SOLO
Antes de o sol nascer Thiago já está em pé passando um cafezinho e preparando a primeira refeição das suas crianças, que ainda dormem. Por isso, o silêncio divide espaço com as mamadeiras, quase prontas. Por volta das sete horas, uma a uma, as crianças vão acordando e assim a rotina do dia avança com a troca de fraldas, roupas e calçados. Quem tem filhos conhece bem essa dinâmica.
Essa é a família do arquiteto Thiago Lopes Camargo Ferreira, 41 anos. Casado por dezesseis anos com Rayssa, juntos eles tiveram quatro filhos: Dante, Cauê e os gêmeos Zay e Chloé. Uma escadinha animada, exigente de cuidados, que tem proporcionado mais e mais descobertas.
Um ano e meio após o nascimento dos gêmeos a família descobriu que Rayssa tinha um câncer no estômago. “Foi algo supersilencioso. Da descoberta até o início do tratamento e a partida dela, a cada dia que passava eu sentia a piora no estado de saúde. Era tão desesperador, eu vivia uma sensação de impotência”, confidenciou o pai em entrevista exclusiva à nossa reportagem.
Rayssa buscou tratamento, mas, faleceu três meses depois do diagnóstico, em 18 de setembro de 2023. “Cada dia sem ela é uma jornada de saudades e lembranças maravilhosas. Durante dezesseis anos ela foi minha esposa, amiga e companheira, o amor que definiu minha vida. A Ray não só me ensinou o significado do amor, mas também a ser pai para os quatro filhos lindos que ela nos deu. Ela era o alicerce, a força que mantinha nossa família unida, uma mulher exemplar, uma supermãe, meiga e com um enorme coração”, disse Thiago.
Ele carrega as alianças de casamento no peito e uma plaquinha com o nome Rayssa, escrito com a caligrafia de Caê: “Ela partiu cedo, vítima de um câncer implacável, mas sua luz continua a brilhar em cada um de nós. Hoje homenageio essa mulher incrível, cujo legado é eterno. O nosso amor é eterno! Que sua memória continue a iluminar nossos dias e que Deus nos dê forças para seguir em frente, sabendo que seus propósitos são maiores do que podemos entender agora”. Rayssa faleceu aos 36 anos de idade.
Viúvo, Thiago tornou-se um genitor raro nas estatísticas: solo, atípico (o primogênito Dante nasceu com síndrome de Down) e pai de gêmeos. “Eu assumi as minhas crianças e vejo como minha obrigação, apesar de eu ter recebido proposta da minha sogra e dos meus pais para deixá-las com eles. Imagine, são meus filhos!”, disse o pai, que já passou por episódios de unidade de terapia intensiva (UTI) com os pequenos.
Embora em bem menor número no país, os pais solo existem e compõem 2,3% dos lares. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e do Censo Demográfico, que analisam diversos aspectos das condições de vida e da estrutura familiar no Brasil.
Registros civis, no entanto, revelam e denunciam o abandono de parte dos pais. Basta observar o registro dos nascimentos sem o nome do genitor. Em 2023, dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) revelaram que, dos 2,5 milhões de nascimentos registrados no Brasil, 172,2 mil crianças não tinham o nome do pai registrado.
Esse número representa um aumento de 5% em relação a 2022, quando 162,8 mil crianças foram registradas sem reconhecimento paterno. A maior proporção de registros sem o nome do pai foi observada na região Norte, com 10% dos nascimentos, seguida pelo Nordeste com 8%. Em números absolutos, o Sudeste teve a maior quantidade, com 57.602 registros (6% do total de nascimentos). A região Sul teve a menor proporção, com 5%.
De volta à rotina de Thiago, naquela manhã invernal de 2024 o silêncio do apartamento se rompia com a turma quase pronta, alimentada e animada para iniciar o dia na rua. Mochilas organizadas e carinhas amassadas embarcavam no carro do pai a caminho da escola.
Os desafios do cuidado diário de quatro crianças ao mesmo tempo vão sendo superados aos poucos e com alguma organização para fazer dar certo. “É uma loucura, que não é diferente de nenhuma casa. Temos os momentos de estresse. É preciso ficar em cima o tempo todo, porque, imagine, são quatro crianças correndo em casa! Vou aprendendo entre erros e acertos”, disse o pai, que sempre envolve as crianças nas atividades de casa, como lavar louça e preparar as refeições.
Às oito horas os quatro já estão na escolinha e é a partir dessa hora até as dezesseis que o pai organiza a casa, as roupas e os brinquedos, vai ao mercado para repor frutas e legumes (as crianças comem superbem) e trabalha em seus projetos como empreendedor nos ramos da arquitetura e da estética.
“Há dias em que eu deixo para depois as coisas de casa e fica uma bagunça mesmo; é assim, um dia após o outro. Espero que Deus me permita ter alguém para ajudar o dia inteiro aqui em casa”, disse em relação à demanda doméstica exaustiva.
Thiago segue as orientações da esposa em relação às refeições e a “determinação” de uma rotina para as crianças. Sem isso, o dia a dia seria um caos: “As crianças precisam de rotina, nós precisamos. Foi difícil no começo, mas hoje acredito que estamos no caminho certo”.
Ao compartilhar sua história nas redes sociais (@pai.solo.thiago), ele possibilitou um movimento interessante de mães e pais solos que dividem suas rotinas de cuidados, atividades e refeições com as crianças, bem como de amor, solidão, cansaço e os problemas – inclusive financeiros – de dar conta sozinho da família: “Recebo mensagens de diversos pais e mães dividindo suas histórias e isso tem me feito muito bem, pois me incentiva a seguir tentando melhorar dia após dia, mesmo com saudade da Ray”.
Os pais e a sogra de Thiago são sua rede de apoio em alguns fins de semana, que é quando o pai tira um tempo para se cuidar. Thiago iniciou recentemente terapia: “Sei que preciso estar bem mentalmente para cuidar deles”.
Assim como Thiago, Benedito Camargo, 81 anos, tem saudades de sua companheira Lindaura Alves Camargo, com quem foi casado por 55 anos. Também vítima de câncer, Lindaura faleceu em 2022, aos 80 anos.
Pai de Celso, 56, Maurício, 55, e Juliana, 47, Benedito é diácono permanente na Arquidiocese de São Paulo (SP): “É muito duro viver sem ela, não quero ter outro casamento, até porque sou casado com o povo. Nossa parceria nesta vida, na educação dos nossos filhos, deu muito certo”.
Nossa reportagem conversou com o diácono na casinha em que optou por viver sozinho, na Vila Zatt, periferia de São Paulo, junto com seu povo, como diz. Com vista para o pequeno jardim de que cuida com dedicação, ele falou da experiência de educar os filhos: “Tudo é muito gostoso, com o primeiro é meio assustador, mas a gente aprende e aí vem o segundo, o terceiro e a gente sente mais segurança”.
Falou também do episódio da adoção de Juliana: “Sempre desejamos muito uma menina e ir buscá-la foi uma alegria para nossa família, que cresceu em amor. Ela chegou assim, num pacotinho”, disse, nostálgico, mostrando com as mãos o tamanho do corpinho da bebê.
Alto, calvo e usando um par de óculos marrons, o diácono aconselha os pais a seguirem o exemplo de São José: aceitarem a missão com coragem: “José não é exemplo de marido só, é exemplo de homem. José cuidou de Maria e de um filho que não era dele, então, ele é um modelo“.
Para o escritor e teólogo Darlei Zanon, São José é exemplo de pai porque assumiu a paternidade de Jesus e na cultura hebraica pai é justamente aquele que assume: “O que temos nos evangelhos e em estudos ligados à arqueologia é a constatação de que ele [José] foi pai porque acolheu e educou”.
Autor da obra Simplesmente José (Paulus Editora), Zanon destaca que José também passou por inseguranças e questionamentos quando deparou com Maria grávida e que ainda assim soube aceitar a missão. “José foi pai em todos os sentidos e certamente educou Jesus quanto à sua profissão, carpinteiro, que segundo estudos arqueológicos não necessariamente é quem trabalha com madeira, mas sim aquele envolvido em construções”, explicou.
Zanon acredita que José também educou e orientou Jesus em suas orações: “Provavelmente José levava Jesus a peregrinações e ensinava todos os valores que fazem parte de uma família, como solidariedade, trabalho e comunidade”.
Não à toa, na Itália o Dia dos Pais é o dia de São José: 19 de março, data que foi oficializada apenas em 1621 sob o Papa Gregório XV (1554-1623). Em 8 de dezembro de 1870, o Papa Pio IX (1792-1878) proclamou São José patrono universal da Igreja.
Em uma de suas catequeses, em audiência-geral, o Papa Francisco ensinou: “Deus confiou em José, como fez Maria, que encontrou nele o esposo que a amava e respeitava e sempre cuidou dela e do Menino. Nesse sentido, São José não pode deixar de ser o guardião da Igreja, porque a Igreja é o prolongamento do corpo de Cristo na história e, ao mesmo tempo, na maternidade da Igreja é espelhada a maternidade de Maria. José, continuando a proteger a Igreja, continua a proteger o Menino e sua mãe; e também nós, amando a Igreja, continuamos a amar o Menino e sua mãe”.