Estimado leitor da Revista Ave Maria, começo nossa reflexão mensal de maio a partir do pensamento do Papa Bento XVI em relação à visão antropológica do homem e suas relações afetivas. Pensar sobre a humanidade contemporânea será sempre um desafio, sobretudo a partir das categorias que compõem a sociedade.
O homem contemporâneo para Ratzinger é aquele que vive no mundo secularizado, pós-metafísico, edificado substancialmente sobre a interpretação científico-matemática da realidade; aquilo que aparece dotado de valor é unicamente o “fato”, alcançado pelos métodos da ciência natural e que pode ser, em consequência, constatável, dominável, transformado pela intervenção do homem. O factum torna-se, assim, imediatamente faciendum, isto é, aquilo que pode ser programado e criado pelo homem e que o projeta para o futuro. O saber torna-se poder. Os processos são assim submetidos à única autoridade comumente reconhecida: a ratio técnica (razão técnica).
Os outros tipos de conhecimento não experimentável, não exprimível em termos científico-positivos, perdem o próprio direito de cidadania no reino do legitimamente comunicável e são confinados ao âmbito do privado, do subjetivo, ao domínio da opinião. Diz ele: “A verdade que ao homem cumpre manipular não é nem a verdade do ser, nem em última análise a dos seres realizados, feitos; mas a verdade da alteração do mundo – uma verdade dirigida para o futuro e para a ação”. Isso é chamado por Ratzinger predomínio do “saber-fazer”. Essa redução da natureza a dados de fatos exaurivelmente penetráveis, e com isso também manipuláveis, tem como consequência que nenhuma mensagem moral que provém de fora do perímetro do nosso eu pode alcançar-nos.
O fenômeno moral, como aquele religioso, vem considerado como pertencente à esfera da subjetividade, não tendo cidadania alguma na dimensão da objetividade. Nesse círculo fechado, tem-se um homem que espera a salvação de si mesmo e parece ser incapaz de dá-la.
Sobre a crise da filosofia moderna, a crise da metafísica, ele diz que não se pode ignorar a pergunta metafísica da interrogação filosófica e continua “lá onde não se coloca mais a questão sobre a origem e fim do real se transcura próprio àquilo que é o mais específico da pesquisa filosófica”. Nesse cenário, qual o lugar de Deus e do fenômeno religioso? A questão de Deus resulta dessa forma estranha ou Deus é colocado à margem entre as coisas que são tidas como importantes para o homem, para o conhecimento e a transformação do mundo. Joseph Ratzinger não fala tanto de um ateísmo teórico, mas de um ateísmo prático, que poderia ser assim enunciado: “Também se Deus existe, este não modifica substancialmente a vida do homem e do mundo”. Essa lógica aprisiona o homem na sua factualidade, traindo a sua natureza mais profunda, tendo como consequência última e lógica e ao mesmo tempo dramática a destruição do homem mesmo, a sua abolição. Então Ratzinger diz que esta ignora aquela abertura constitutiva do homem ao mistério do ser, que ele expressa e sintetiza em três aspectos característicos da dinâmica espiritual do homem: a procura de sentido; a lei fundamental do ekstasis como manifestação do significado da pessoa; a capacidade humana do divino.
A procura do sentido: a natureza humana não pode ser saciada pela pura positividade dos fatos. O texto de Mateus 4,4 oferece a Ratzinger o elemento para sublinhar o significado global da existência. Diz ele: “Com efeito, o homem não vive apenas do pão da factualidade; com efeito, ele vive do amor, do sentido das coisas. O sentido é o pão que lhe possibilita subsistir, em sentido próprio como homem. Sem a palavra, sem uma finalidade, sem amor o homem chega à situação de não mais viver, mesmo cercado de todo conforto humano”. O homem necessita de um sentido que preencha a sua solidão: “Esta solidão pode ser superada não por meio da razão, mas por meio de uma presença, de um ser que o queira bem”. O homem pode vencer a solidão somente experimentando a existência como um ser amado.
Ratzinger diz que a questão do sentido não opcional, elemento assessório a uma vida em si já completa, mas é a condição mesma para poder viver, é aquilo que só pode justificar a sua transmissão às futuras gerações. Enfim, o homem que busca um sentido último e onicompreesivo percebe que esse sentido não pode vir da ciência e nem criado do fazer e do operar, mas pode somente ser esperado e recebido daquele que é “outro”de si.
A lei fundamental do ekstasis como manifestação do significado original da pessoa: esse é um principio que norteia toda a teologia de Ratzinger. “De ekstasis”, sair de si. A história da salvação, por exemplo, vem compreendida à luz desse princípio como um grande êxodo. Da vocação de Abraão ao seu cumprimento no sacrifício pascal de Cristo, que permanece presente e se desenvolve no mundo pela abertura missionária da Igreja. A profissão batismal representa um sair do próprio “eu” autônomo para entrar no “nós” da comunidade eclesial. A vida cristã é caracterizada por essa dinâmica de “sair de si” sobre a base de Mateus 10,39, “Somente quem perde a vida a encontra”.
Para Ratzinger, também a moderna pesquisa da antropologia filosófica consiste na própria superação de si: a abertura, a relação com a totalidade, faz parte da essência do Espírito, assim que somente no superar-se possui-se a si mesmo. O verdadeiro centro da existência humana aparece assim ser “ex sistere”, fora de si, somente movendo para o qual o homem pode atingir o seu “en si” próprio. Para ele, Deus é um ser dialógico, em que a essência é ser relação; somente uma compreensão do homem como “pessoa”, entendido como relação e abertura ao outro, como atuação permanente da dinâmica do êxodo, respeita a peculiaridade do Espírito humano, criado “à imagem e semelhança de Deus”. Enfim, diz Ratzinger: “O outro, por meio do qual o Espírito torna-se a si mesmo, é aquele completamente outro, ao qual, balbuciando, pronunciamos o nome Deus”.
A capacidade humana do divino: se o homem é busca de significado da realidade, se o seu ser pessoa se realiza na abertura, no ekstasis, deve-se concluir que a sua medida é somente o infinito, o tudo, é Deus mesmo. Esse é o aspecto que distingue o espírito humano: “O homem é ser capaz de pensar o totalmente diverso, o transcendente, isto é, Deus, como quer que o chame”. Diz Ratzinger: “Se poderia dizer que o homem representa aquela fase da criação, aquela criatura à qual é dada a possibilidade de ver a Deus e então de participar a vida. (…) Devemos agora acrescentar que essa abertura não é um ‘a mais’ na existência, a qual poderia também ser vivida independente dessa, mas que tal abertura representa aquilo que é mais profundo no homem, ou seja, propriamente aquilo que chamamos alma”. Essa “capacidade” humana do divino vem implicitamente, mas claramente sugerida pelo mesmo texto bíblico do Gênesis quando descreve a criação do homem. Aqui duas afirmações são significativas: Deus criou um ser que pode pensar e conhecer aquele que o criou; o fato de ser criado à imagem e semelhança de Deus, diz ele, “A semelhança com Deus significa ‘referência’, é uma dinâmica que coloca em movimento o homem e o orienta para o completamente outro, significa capacidade de relação, significa que o homem é capaz de Deus. Em consequência, o homem é ‘ele mesmo’ em máxima potência quando sai de si, quando é capaz de dizer ‘tu’ a Deus. Essa dinâmica se cumpre somente com o Adão definitivo, aquele que é a perfeita imagem e semelhança de Deus e que por isso revela exemplarmente que é o homem. A abertura para Deus torna-se, de fato, orientação para Cristo, para o seu corpo ressuscitado, para o qual não somente o homem, mas toda a realidade, tende, e na qual ambos se tornam plenamente ‘ele mesmo’”.