Somos herdeiros de uma concepção que identifica castidade com abstinência sexual e com isso a reduz à privação do “uso” do sexo para a obtenção do prazer. Essa concepção faz com que a preocupação fundamental consista em evitar a violação das normas morais e não em empenhar-se pela qualidade das relações, sejam elas sexuais ou não. O foco é posto no domínio de si, a ponto de a virtude por excelência ser o autocontrole. Desse modo, a integração do desejo sexual no processo de desenvolvimento e amadurecimento da pessoa fica relegada a segundo plano ou é indevidamente reprimida. Quando isso acontece, podemos afirmar que a pessoa abstinente não é necessariamente casta: mesmo privando-se do “uso” do sexo, ela não consegue integrar a própria sexualidade na sua personalidade e no seu projeto de vida. Não havendo integração, não haverá autorrealização.
Somos também herdeiros de uma concepção que considera a maioria dos atos que envolvem o sexo como pecado grave. Não podemos esquecer-nos de que o sexto mandamento visava à proteção do casamento e, no decorrer da história, transformou-se numa proibição muito mais abrangente contra atos sexuais em geral. Do “não cometerás adultério” (Ex 20,14; Dt 5,18), passou-se ao “não pecar contra a castidade” (fórmula catequética adotada pela Igreja), o que levou a uma compreensão indevida da castidade. Nessa perspectiva, importam a estrutura física do ato ou o status daqueles que o praticam e não tanto o esforço de integração da sexualidade e a natureza qualitativa do relacionamento. Torna-se evidente que a prioridade não é dada à pessoa na situação concreta em que se encontra.
Somos herdeiros, ainda, de uma concepção de que todo uso do sexo fora do Matrimônio constitui um pecado grave. Embora a Igreja afirme a ilicitude do uso do sexo fora do contexto matrimonial, ela é cautelosa ao se pronunciar sobre a pecaminosidade de tal uso, pois tem consciência de que não basta o objeto escolhido para determinar a moralidade de um ato em si, mas deve-se levar em conta outros fatores – como o fim visado ou a intenção e as circunstâncias da ação – no juízo moral. O fato de a sexualidade ser “pessoal e verdadeiramente humana quando integrada na relação de pessoa a pessoa, na doação mútua, total e temporalmente ilimitada do homem e da mulher”, segue que para a Igreja, fora do contexto conjugal, não é possível uma integração correta da sexualidade na pessoa. Consequentemente, a castidade é praticamente reduzida – para os que não se encaixam nesse contexto – ao esforço de controlar os desejos sexuais e abster-se de qualquer tipo de intimidade sexual, à custa do esforço de discernir como viver os significados positivos da sexualidade (amor, reciprocidade, fidelidade, comunhão, abertura, diálogo etc.) e evitar os negativos (uso, posse, infidelidade, agressividade, abuso, violência etc.).
Tendo presentes tais elementos não é difícil compreender a indevida identificação feita entre ilicitude com pecaminosidade. Contudo, se tanto a sexualidade quanto a castidade se caracterizam por um modo de ser e de viver o amor, o “pecado contra a castidade” consiste, sobretudo, na vivência de uma sexualidade não integrada com o amor, entendido como doação de si e afirmação do bem do outro; mais ainda, é preciso reconhecer que, no esforço que as pessoas fazem para realizar as exigências derivadas do amor nas diversas relações que estabelecem, elas têm de lidar com o que é próprio da sua natureza, isto é, fragilidade, imperfeição, vulnerabilidade. O amor tem etapas de crescimento. Não é sempre que as pessoas conseguem amar como gostariam. Também não é fácil amar doando-se totalmente ao outro. Aprendemos a amar e essa aprendizagem está sujeita à lei da gradualidade.
Em síntese, precisamos superar a fácil identificação entre finitude humana e vontade pecadora e admitir que, no esforço de realizar as exigências derivadas do amor, muitas das atividades sexuais nas quais as pessoas se envolvem poderiam ser entendidas mais como imaturas do que como imorais. Não podemos ignorar que a escala de certo e errado precisa ser contrabalançada pela escala de crescimento. À medida que vão amadurecendo, as pessoas vão compreendendo que “o amor é uma realidade única, embora com distintas dimensões; caso a caso pode uma ou outra dimensão sobressair mais”. Em outras palavras, é apenas gradualmente que as pessoas aprendem a abrir-se às exigências do amor que visa à total doação de si e à plena afirmação do bem do outro. Durante essa aprendizagem, não podemos subestimar o valor moral da qualidade dos relacionamentos e, muito menos, da “qualidade da presença”, mesmo em relacionamentos distantes de um possível ideal moral.
Referencias:
- Segundo texto da série sobre castidade.
- Catecismo da Igreja Católica, 2337.
- CENCINI. Virgindade e celibato, hoje, . Paulinas, p. 137.
- BENTO XVI, Papa. Deus Caritas Est. Carta encíclica sobre o amor cristão. São Paulo: Paulinas, 2006, nº 8.
- BURGGRAEVE, Roger. De uma sexualidade responsável a uma sexualidade significativa: uma ética de crescimento como ética de misericórdia pelos jovens nesta era de AIDS. In: KEENAN, James F. (org.). Eticistas católicos e prevenção da AIDS. São Paulo: Loyola, 2006, p. 310.