Com o falecimento do Papa Francisco, o mundo católico e todo o cenário religioso internacional se veem diante do necessário exercício de memória e discernimento acerca de seu legado. Muito além de ter sido o primeiro pontífice latino-americano, Francisco deixa fortes marcas na Igreja, especialmente pela sua incansável luta contra o chamado “mundanismo espiritual” e pela renovação da vivência cristã à luz do Concílio Vaticano II – marcas que ganham ainda maior significado quando refletidas à luz da obra Mundanismo espiritual (Padre Calmon Rodovalho Malta, Editora Ave-Maria, 2025).
Em um contexto eclesial frequentemente abalado por tensões internas e desafios externos – escândalos, centralização do poder, resistência de grupos ultraconservadores –, Francisco conseguiu resgatar o espírito conciliar focado na reconciliação da Igreja com o mundo contemporâneo. Esse não foi um processo de acomodação acrítica, mas sim uma fidelidade criativa ao coração do Evangelho e ao chamado de Jesus para uma Igreja “em saída”, capaz de dialogar com as alegrias e angústias da humanidade (cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes).
No cerne desse processo está a denúncia do “mundanismo espiritual”, expressão introduzida por Francisco na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Trata-se de um fenômeno egoantropocêntrico e autorreferencial, que converte a prática religiosa em instrumento de busca por prestígio, poder e glória pessoal em detrimento da missão cristã e do espírito de serviço radical. Esse mundanismo não é mero apego a bens materiais, mas uma corrupção interna – um distanciamento da alegria genuína do Evangelho e uma autossuficiência espiritual que esvazia o cristianismo de sua potência transformadora.
O Papa Francisco, fiel ao legado conciliar, identifica manifestações desse mundanismo no gnosticismo (conceber a fé apenas como um saber elitista e intimista) e no neopelagianismo (apostar numa perfeição moral autorreferencial, fruto apenas do esforço pessoal, esquecendo o papel fundamental da graça divina). Esses desvios criam comunidades autorreferenciais, resistentes à conversão pessoal e à abertura ao outro e impedem a Igreja de ser sinal eficaz da misericórdia e da justiça de Deus.
É justamente nessa tensão entre o chamado evangélico e os ardis do mundanismo que Francisco insistiu em uma Igreja simples, pobre com os pobres, acolhedora, não apegada ao poder nem à ostentação. Assim, enfrentou resistências de segmentos tradicionalistas que viam em sua liderança uma ameaça a modelos rígidos e pré-conciliares de Igreja.
A principal resposta de Francisco a essas crises foi reafirmar, com gestos concretos e magistério, o núcleo da fé cristã: a gratuidade da salvação, a centralidade da misericórdia, a saída de si em direção aos marginalizados e o cuidado com toda a criação. Para ele, a essência da Igreja é a de servir e incluir, promovendo uma autêntica sinodalidade – uma escuta mútua, partilha de responsabilidades e discernimento conjunto, em vez de clericalismo e concentração de poder.
O pontificado de Francisco obrigou posturas obscuras a virem à luz ao denunciar buscas de poder travestidas de zelo doutrinal enquanto se escondiam da conversão pessoal. Essa exigência evangélica não foi apenas teórica: Francisco fez do seu papado um processo de conversão pastoral permanente, renovando estruturas eclesiais, ampliando o diálogo inter-religioso, aproximando-se de problemas globais como a desigualdade social e a devastação ambiental. Documentos como a Carta Encíclica Laudato Si’ e a Carta Encíclica Fratelli Tutti marcam essa ampla visão, sintonizada com o espírito do concílio.
O legado de Francisco não se mede apenas por gestos midiáticos ou reformas administrativas, mas pelo impulso espiritual que conferiu à Igreja: o de abrir-se continuamente ao Espírito Santo, renovar-se na fidelidade ao Evangelho e colocar os mais pobres e marginalizados no centro da vida e da missão eclesial. Sua luta contra o mundanismo espiritual ecoa o chamado permanente à conversão, ao reconhecimento da ação de Deus no mundo e à superação de todo fechamento institucional ou doutrinal que impede a “alegria do Evangelho”.
A herança de Francisco é convite a um autoexame sincero: permanecemos fiéis ao núcleo da fé ou nos perdemos em querelas e disputas supérfluas? Há um caminho de superação: confiar na graça, abraçar a humildade e deixar-se conduzir, como Francisco fez, pela esperança e pela beleza do Evangelho.
NOTAS MARIANAS
MISTÉRIOS DA GLÓRIA
“A contemplação do rosto de Cristo não pode deter-se na imagem do crucificado. Ele é o Ressuscitado! Contemplando o Ressuscitado, o cristão descobre novamente as razões da própria fé (cf. 1Cor 15,14) e revive não só a alegria daqueles a quem Cristo se manifestou – os apóstolos, Madalena, os discípulos de Emaús –, mas também a alegria de Maria, que deverá ter tido uma experiência não menos intensa da nova existência do Filho glorificado.” (Rosário da Virgem Maria, 23)
É costume rezá-lo às quartas-feiras e aos domingos.