COMO ESCOLAS E INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR ESTÃO PROMOVENDO UMA EDUCAÇÃO AFIRMATIVA PARA COMBATER O PRECONCEITO E CRIAR AMBIENTES INCLUSIVOS
Desde cedo pessoas negras são levadas a refletir sobre sua condição racial. O início da vida escolar para muitas crianças pode ser o começo da conscientização sobre as disparidades raciais que enfrentarão ao longo de suas vidas. É nessa época que os pequenos experimentam pela primeira vez os traumas da discriminação e do racismo.
A construção de uma educação inclusiva e antirracista desde os primeiros passos na escola é fundamental para criar um futuro mais justo e igualitário para todas as pessoas, independentemente de sua raça ou origem étnica.
A Revista Ave Maria embarcou em uma jornada para explorar como as escolas e instituições de ensino superior podem desempenhar um papel fundamental na promoção da educação antirracista.
MAS O QUE É A EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA?
A educação antirracista desempenha um papel fundamental na luta contra o racismo nas salas de aula, permitindo a conscientização e a disseminação de informações em diversas áreas do conhecimento humano, visando a reduzir qualquer forma de opressão e exclusão entre os estudantes e em suas experiências fora da escola.
As estratégias e práticas da educação antirracista visam à abordagem assertiva das consequências negativas do preconceito. Por meio do uso de materiais educacionais e planos didáticos, professores e instituições têm a responsabilidade de ensinar sobre as contribuições passadas e atuais de povos negros, bem como de promover a valorização e o reconhecimento de culturas historicamente marginalizadas.
Não podemos esquecer que o combate ao racismo não é uma pauta somente do povo negro, é algo a ser combatido por todos nós, negros e brancos. Informar-se sobre racismo, ler mais autores negros, reconhecer os privilégios de ter nascido branco, apoiar ações que promovam a igualdade racial nos diferentes âmbitos da sociedade, entre outras ações, pode ajudar a reverter o quadro atual, afirma a acadêmica, filósofa e escritora Djamila Ribeiro, no livro Pequeno manual antirracista. Ela é uma autora referência do feminismo negro no Brasil.
LEI 10.639/03 E O ENSINO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA
A lei que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da cultura e história afro-brasileira e africana nas escolas de todo o Brasil completou vinte anos em 2023. A Lei 10.639/03 visa a fortalecer o reconhecimento de várias culturas, povos e identidades em prol da conscientização.
Para fazer frente a tudo isso e construir uma escola comprometida com o reconhecimento e com a valorização da diversidade existente no Brasil, a Prefeitura de São Paulo (SP) lançou em março de 2023 seu currículo antirracista, para ser trabalhado em todas as escolas municipais. O documento tem mais de 220 páginas e aborda conceitos como raça, racismo, preconceito e discriminação. Aponta direções para que as escolas incentivem o conhecimento à diversidade brasileira e potencializem práticas pedagógicas inclusivas e antirracistas.
Atenta a essa realidade, a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Eurípedes Simões de Paula, localizada em Pirituba, na zona norte de São Paulo, adotou em todos os projetos desenvolvidos uma perspectiva antirracista não somente no mês de novembro, mas em todo ano letivo.
“Nos projetos de contação de histórias sempre escolhemos livros com essa temática. Nos projetos com brincadeiras também incluímos brinquedos de descendência de matrizes africanas. Todas as ações são debatidas e discutidas dentro dessa perspectiva o ano todo e não somente em uma data específica”, declarou em entrevista à Revista Ave Maria Ana Cristina Avilez, assistente de direção da escola.
A instituição de ensino, que atende crianças de 4 a 6 anos, compreendeu que a educação antirracista trabalhada desde a educação infantil cria ambientes mais inclusivos e acolhedores, onde todas as crianças se sentem valorizadas e respeitadas.
“Por serem muito pequenas, as crianças trazem para escola o que escutam em suas casas. Sempre que percebemos uma fala racista e preconceituosa, imediatamente fazemos um trabalho de intervenção, trazendo mais histórias de matrizes africanas e problematizamos esses estereótipos trazidos em sala. No geral, as crianças não têm nenhuma dificuldade em entender que temos que respeitar as pessoas como são e a importância de cada um dentro do espaço escolar e fora dele”, enfatizou a assistente de direção. O envolvimento das famílias em tudo que acontece na escola também ajuda a fortalecer os vínculos.
POR UMA SOCIEDADE MAIS HUMANA, IGUALITÁRIA E SOLIDÁRIA
A educação para as relações étnico-raciais, o antirracismo e a inclusão são valores que fundamentam as práticas cotidianas da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Professora Maria Aparecida Rodrigues Cintra, localizada no bairro da Brasilândia, em São Paulo. O diretor da escola, Luiz Fernando Costa de Lourdes, falou com a reportagem sobre a temática.
Muito além de um projeto anual, o planejar pedagógico deles parte do calendário dos direitos humanos, vai se constituindo em reflexões e aprendizados com empatia, pensando nos espaços da escola com referências africanas e indígenas para uma educação para todos.
“Nossa escola pensa em uma educação antirracista, que combate ativamente toda e qualquer expressão de preconceito, além de valorizar a contribuição histórica africana e dos povos originários na formação cultural do Brasil. Entendemos que para isso é preciso haver a participação de toda a comunidade escolar, desde a pessoa que está no portão até aquela que serve a alimentação”, ressaltou o educador.
Sobre os desafios que a escola enfrenta na implementação de práticas antirracistas, o diretor afirma que é um processo que está em construção cotidiana e infinitamente: “Educar para uma consciência cidadã, solidária e humana é como ‘plantar tâmaras’, pois quem planta não colhe seus frutos, sempre deixa para a geração posterior. Serão os filhos de nossos filhos que irão colher os frutos de uma sociedade mais humana, igualitária e solidária”.
Ele completa afirmando que os benefícios que eles têm obtido são a criação de um ambiente escolar acolhedor, emocional, educacional e culturalmente seguro para as crianças: “Estudantes mais conscientes, promovendo diálogo e capazes de tomar decisões pensando coletivamente em si e nos outros”.
EMBAIXADORES POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA
Do outro lado da cidade, na Vila Progresso, bairro da zona leste de São Paulo, um projeto da Marista Escola Social Irmão Lourenço tem chamado a atenção de todos. Intitulado “Embaixadores por uma Educação Antirracista”, o projeto reúne alunos do ensino fundamental, anos finais, e do ensino médio em atividades que combatem o racismo e promovem a prática da educação antirracista no ambiente escolar e na vivência da sociedade.
“O projeto idealizado em 2022 busca responder aos desafios relacionais e de conflitos entre os estudantes mediante a reprodução do racismo estrutural no ambiente escolar. Busca também identificar, reconhecer e potencializar a atuação de alguns adolescentes e jovens que já procuram fazer a diferença no posicionamento contra o mesmo racismo estrutural”, explicou a idealizadora do projeto, Andreia Aparecida Castro, diretora da instituição.
Nas palavras dela, os embaixadores são potenciais parceiros da gestão escolar e de toda a comunidade educativa; ao todo nove estudantes compõem o grupo atual, acompanhados de direção escolar, serviço social e biblioteca. Os alunos participam de encontros formativos e ações promovidas no calendário escolar, por meio de seminários, rodas de conversa, clube de leitura, eventos culturais que ocorrem não só na escola como também em outras instituições parceiras.
O engajamento dos estudantes na pauta antirracista, o protagonismo e o empoderamento dos adolescentes e jovens, a representatividade entre os pares, a parceria com a gestão e os educadores e a relação de cuidado de estudante para estudante são alguns dos benefícios percebidos após a implantação do projeto no ambiente escolar.
“Quando passamos a ver um adolescente ser acolhido e defendido por outros colegas que testemunharam uma fala racista ou ouvimos de uma estudante negra que ela passou a aceitar mais o seu cabelo e a se achar bonita a partir das conversas que teve com uma colega já tivemos indícios que estava valendo a pena”, pontuou Andreia.
O assistente social Robert Aparecido de Assis também participa desse projeto e auxilia na formação dos embaixadores. Em entrevista à reportagem da Revista Ave Maria, ele expressou que essa participação o fez retornar a experiências vividas em seu passado, quando estudante negro de escola pública, em que viveu situações de racismo direta e indiretamente.
“Durante uma ocasião no pátio da escola, o inspetor escolar, ao me ver sentado sobre uma mesa, dispensou a frase ‘Eu sei que você gosta de ficar pendurado em árvores, mas por favor desça daí’. Fiquei sem entender, pois nunca brincara na escola me pendurando em árvores, até porque a parte arborizada da escola se encontrava em local restrito aos estudantes. Nessa época eu tinha entre 11 e 12 anos. Após esse episódio se passaram aproximadamente quinze anos e entendi a frase do profissional da escola da pior forma, como se tivesse levado um soco na nuca e caído em cima da palavra ‘racismo’”, recordou o educador social.
A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR
Não apenas na educação básica, mas também na educação superior, a promoção da igualdade racial e o combate ao racismo são importantes e fazem parte do projeto pedagógico. Assim acontece no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), que possui um núcleo de educação das relações étnico-raciais o qual reúne alunos, professores e pessoas da comunidade de aprendizagem.
“É um núcleo vinculado à extensão, mas também atua na pesquisa e no ensino. Ele visa a trazer a discussão das relações étnico-raciais e seus reflexos no cotidiano das pessoas, na sociedade e na educação com o objetivo de sensibilizar toda a comunidade de aprendizagem para a necessidade do enfrentamento ao racismo nos mais diversos âmbitos”, expressou a professora Maísa Ribeiro, responsável pelo núcleo da unidade de Campinas (SP).
Com reuniões mensais, o grupo de estudos é composto de estudantes, docentes e ativistas de movimentos sociais que realizam discussões de temas pertinentes à questão étnico-racial e sua conscientização da luta antirracista. O núcleo realiza eventos, promove palestras, cursos livres, visitas monitoradas e também possuem livros publicados sobre a temática, que podem ser baixados no site unisal.br/nucleos.
O núcleo também criou uma cartilha intitulada Para uma educação antirracista no UNISAL, que visa a promover uma educação antirracista dentro e fora do ambiente acadêmico, material também disponível no site do centro universitário.
Na opinião da professora Maísa, a iniciativa da criação desse núcleo no ensino superior é de extrema importância: “Nosso núcleo reúne estudantes, pessoas negras, para falar das suas dores e dificuldades e também das potencialidades. Os integrantes buscam por meio da educação ampliar sua consciência sobre as desigualdades e quais direitos têm, o que muitas vezes é negligenciado. Favorece também a valorização da cultura africana e afro-brasileira, sendo um espaço de formação profissional, de pesquisa e de fortalecimento no enfrentamento do racismo nos seus mais diferentes âmbitos”.
O QUE PENSAM OS JOVENS EMBAIXADORES POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA
“Estamos mudando a visão de mundo de muita gente e ainda vamos transformar muitas vidas. Juntos somos mais fortes e um dia a nossa luta vai estar apenas nos livros.” (Brisa Isabelle Oliveira, 15 anos)
“O racismo é um tema muito delicado e já está enraizado na sociedade. Um dos principais desafios é desestruturar o racismo da nossa sociedade.” (Luan Lisboa, 18 anos)
“Eu me inscrevi para ser embaixadora por conta de muito racismo pelo qual já passei e vi muitas pessoas perto de mim passarem também. Quero combater o racismo cada dia mais.” (Sâmyra Mendes Carvalho, 13 anos)
“Aprendi que não basta apenas não sermos racistas, temos que ser todos antirracistas.” (Marc D’Lucca da Silva, 16 anos)