NO COMBATE ÀS DROGAS E AO ALCOOLISMO, GRUPOS DE APOIO E INICIATIVAS DA COMUNIDADE CATÓLICA AJUDAM NO PROCESSO QUE TEM O ACOLHIMENTO FAMILIAR COMO PARTE FUNDAMENTAL DO TRATAMENTO
O consumo de drogas lícitas e ilícitas é uma realidade crescente não só no Brasil como em todo o mundo. E o Dia Nacional do Combate às Drogas e ao Alcoolismo, celebrado em 20 de fevereiro, serve para aumentar a reflexão sobre os malefícios e lembrar que o alcoolismo e a dependência química são doenças que necessitam de tratamento, acompanhamento e apoio familiar.
No Brasil, estudos mostram que o aumento do consumo de álcool, entre outras drogas, agravou-se ainda mais no contexto da pandemia do novo coronavírus. Pesquisa realizada nesse período pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em conjunto com outras instituições verificou que 30% dos entrevistados relataram aumento no consumo de álcool e outras substâncias.
No período pré-pandêmico, em agosto de 2019, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou um relatório de avaliação do uso de drogas no Brasil. A pesquisa apontou que 34% dos indivíduos menores de 18 anos já consumiram álcool, sendo que 5% – cerca de um milhão de adolescentes – deles reportaram consumo excessivo, classificado como dependência. A faixa etária com a maior incidência da dependência alcoólica se dá entre os 25 a 34 anos, em que 23% fazem uso excessivo da bebida.
A pesquisa da Fiocruz também detalhou que as drogas ilícitas com maior consumo foram a maconha, a cocaína em pó e os solventes. 15% dos homens já consumiram drogas ilícitas e entre as mulheres a incidência é de 5,2%. Ainda de acordo com a pesquisa, 16 anos é a idade média em que se dá o primeiro consumo para ambos os gêneros*.
Doença que atinge milhares de pessoas, a dependência química e alcoólica desestabiliza não apenas os próprios doentes como suas respectivas famílias.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a dependência química como uma doença crônica e progressiva, além de gerar outras enfermidades. Quando se fala que os familiares adoecem junto, isso significa que a luta na caminhada muitas vezes é cheia de altos e baixos. A busca por ajuda é fundamental e essencial e, como na maioria dos tratamentos, a vontade deve partir do próprio doente. Uma das iniciativas mais longevas no Brasil é a Pastoral da Sobriedade, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que atua na prevenção e recuperação da dependência química e outras dependências desde 1998. É uma pastoral social com cinco frentes de atuação: prevenção, intervenção, reinserção social e familiar, recuperação e atuação política presente nas 1.296 paróquias em todos os Estados do Brasil.
Cada grupo está diretamente ligado e articulado com a paróquia a que pertence. Os encontros são realizados nas salas e templos religiosos das próprias paróquias, como explica Denise Ferreira de Souza Ribeiro, coordenadora nacional da Pastoral da Sobriedade: “Por meio dos grupos de autoajuda, atendemos semanalmente dependentes e familiares que são acompanhados por agentes voluntários que fazem o curso de capacitação ministrados pela pastoral”.
O objetivo da reunião é tratar o problema da dependência química abrangendo o grupo familiar, sem, no entanto, promover confrontos: “Nossas reuniões estão baseadas no modelo sistêmico, no qual a dificuldade de um dos membros da família é compartilhada por todos”, exemplifica ela.
Denise conta que, enquanto o dependente participa buscando a recuperação, o familiar recebe orientação e ajuda de maneira efetiva na recuperação de seu dependente. O grupo de autoajuda é aberto a todos. “Assim, por meio de uma interação dinâmica, que é a partilha da experiência de vida de cada participante, todos tomam consciência dos problemas que estão prejudicando o relacionamento familiar”, esclarece.
A partir das reflexões no programa “12 Passos” da Pastoral da Sobriedade, a conscientização deve estimular a mudança de comportamento, tornando dependente e familiares mais sensíveis ao sofrimento um do outro: “Essa sensibilidade os fará mais acolhedores e compreensivos e os levará a demonstrar a caridade e o amor incondicional que todo cristão tem o dever de vivenciar, principalmente com as pessoas mais próximas, que são as que fazem parte da própria família”, diz Denise.
Denise Ferreira trabalha há vinte anos na Pastoral da Sobriedade e foi testemunha de muitas histórias ao longo desse período. Ela explica que cada participante tem uma disposição para o tratamento: “Pela nossa experiência é necessária a vivência de pelo menos três ciclos de doze passos, o que daria em torno de nove meses para começar a solidificar a sobriedade. Ela depende muito do grau de comprometimento da pessoa consigo e com o tratamento, além da continuidade nas reuniões do grupo para fortalecimento e prevenção de possíveis ‘recaídas’”.
De um dos casos, em especial, ela lembra com emoção. Um casal com dois filhos; o pai, usuário de drogas desde os 12 anos, muito violento com a esposa e os filhos, deixou os estudos ainda criança para levar a vida no tráfico. A esposa procurou a pastoral e logo foi inserida no grupo de autoajuda. Um dia, ela convidou o marido a participar. Ouvindo as experiências de outros, a Palavra de Deus, e atento às reflexões dos agentes e de outros familiares, ele resolveu se tratar e parar de usar drogas. Hoje está há dezoito anos em sobriedade, aprendeu a ler e a escrever com duas professoras voluntárias, buscou uma profissão e é um excelente pai de família. O casal fez o curso da Pastoral da Sobriedade e hoje eles são agentes da pastoral.
Para Denise, também agente do grupo de autoajuda da Paróquia São Sebastião, Diocese de Barra do Piraí, em Volta Redonda (RJ), a religiosidade e a espiritualidade têm papel importante na prevenção e no tratamento dos transtornos do uso de álcool e de outras substâncias: “A dependência química não tem cura, mas pode ser estabilizada pelo resto da vida. A espiritualidade vem ajudar nesse encontro pessoal consigo mesmo, com o outro e com o próprio Deus”, explica, antes de emendar: “Para as famílias que passam pela problemática das dependências, ficam aqui minhas dicas: os três ‘Cs’: você não cura, você não controla e você não é culpado(a). Não retarde a busca por ajuda e nem espere chegar ao fundo do poço”.
Para Padre Haroldo Oliveira Brito, o pensamento é o mesmo. Responsável regional pelas Fazendas da Esperança de Minas Gerai e do Espírito Santo, a metodologia do acolhimento aos doentes se baseia no tripé formado por trabalho, convivência e a espiritualidade. A Fazenda da Esperança é uma comunidade terapêutica que atua desde 1983 no processo de recuperação de pessoas que buscam a libertação de seus vícios, principalmente de álcool e drogas.
Na sede regional, a Fazenda da Esperança Santo Antônio de Santana Galvão, em Guarará (MG), os acolhidos passam por diversos setores de trabalho. O tempo de permanência nas fazendas é de um ano. “A pessoa que deseja ir para a fazenda deve fazer uma carta, de próprio punho, se possível, pedindo a vaga. A família recebe, mensalmente, uma cesta de produtos, feita e produzida pelos acolhidos, fruto do trabalho deles, e com a venda desses produtos a família ajuda a manter seu parente na fazenda”, complementa Padre Haroldo.
A Fazenda Guarará existe há doze anos e tem capacidade para acolher 72 homens. Já passaram 3 mil pessoas pela unidade. Há também fazendas específicas para o acolhimento de mulheres espalhadas pelo Brasil e no mundo. “A espiritualidade é fundamental. Ajuda muito na recuperação, pois há a oportunidade de fazer um encontro pessoal com Deus e entender como são amados por Ele”, explica Padre Haroldo.
Para ele, os motivos que levam à dependência química e ao alcoolismo são diversos: “A desestrutura familiar, com a ausências dos pais, leva a maioria a buscar algo que preencha o vazio que sentem. A falta de amor é a maior causa. A maioria está na faixa de 20 a 35 anos. Muitos têm filhos, mesmo sem terem casado. Devemos exercitar a misericórdia entre nós. Todos nós erramos, temos defeitos. Diferentes razões levam as pessoas a esse caminho tortuoso. Deus está sempre de braços abertos para nos acolher. Devemos fazer o mesmo”, decreta.
* Fontes: Fiocruz e Ministério da Saúde.