Por que a fé cristã se importa com as estruturas da sociedade?
A Doutrina Social da Igreja (DSI) é a resposta histórica e teológica da fé cristã às grandes questões do mundo moderno. Longe de ser uma mera coleção de normas ou posturas morais, ela nasce do encontro entre o Evangelho de Jesus Cristo e as desafiadoras realidades sociais, políticas e econômicas da humanidade. Trata-se, em essência, de um caminho de discernimento e ação que busca transformar o mundo segundo o desígnio de Deus.
A Igreja entende que não pode ser indiferente diante da pobreza, da exploração, da exclusão e da desigualdade. Por isso, a DSI proclama a primazia dos bens espirituais e morais sobre os materiais, reafirma a dignidade inviolável de cada ser humano, valoriza o trabalho como meio de realização pessoal e construção do bem comum e convoca todos os cristãos à solidariedade concreta com os mais vulneráveis.
Um ponto de partida: a Rerum Novarum
Embora já houvesse iniciativas e reflexões sociais por parte de católicos desde os séculos anteriores, foi com a Encíclica Rerum Novarum, publicada por Leão XIII em 15 de maio de 1891, que o magistério da Igreja deu um passo decisivo. Este documento nasceu em um contexto marcado pelas transformações da Revolução Industrial, com suas fábricas, grandes cidades, exploração da mão de obra e concentração de riqueza.
A encíclica é a primeira a tratar concretamente de temas ligados à Doutrina Social da Igreja, de modo especial a condição dos trabalhadores. Por isso, denunciou as graves desigualdades sociais e as condições de trabalho precárias da época, especialmente aquelas enfrentadas pelos operários na Revolução Industrial, defendendo a intervenção do Estado para garantir justiça social e dignidade laboral.
A Rerum Novarum é frequentemente chamada de “carta magna da atividade cristã no campo social” e marcou o início de uma nova fase da Igreja, comprometida com a leitura dos sinais dos tempos e com a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Desde então, o pensamento social da Igreja se desenvolveu continuamente por meio de documentos posteriores, como Quadragesimo Anno, Mater et Magistra, Populorum Progressio, Centesimus Annus, entre outros.
Papa Leão XIV e os desafios do presente
Recentemente eleito, o Papa Leão XIV tem dado novo vigor à Doutrina Social da Igreja, reconhecendo sua relevância para os desafios contemporâneos. Desde o início de seu pontificado, ele tem feito referências frequentes à Rerum Novarum, resgatando os princípios de Leão XIII e aplicando-os ao mundo de hoje.
Para Leão XIV, a DSI é um guia para a ação cristã na sociedade, oferecendo chaves interpretativas para questões como a desigualdade global, a crise ambiental, o desemprego estrutural, os conflitos armados, o populismo político — e agora também os impactos da Inteligência Artificial (IA) e dos algoritmos. Ele descreveu a IA como “outra revolução industrial”, apontando que seus avanços no campo digital exigem a mesma atenção da Igreja para defender “a dignidade humana, a justiça e o trabalho”.
Leão XIV advertiu sobre o risco de a inteligência artificial comprometer o desenvolvimento intelectual, emocional e espiritual das crianças e jovens, alertando que o acesso a dados “não é sinônimo de inteligência verdadeira”. Ele enfatizou que, embora a IA possa ajudar na democratização do conhecimento e acelerar a pesquisa, seu uso sem critérios éticos pode gerar injustiça, conflitos e uma forma de “perda do que é humano”.
O Sumo Pontífice conclama governantes, empresas de tecnologia e a própria comunidade científica a adotarem “responsabilidade e discernimento” na governança da IA, garantindo que ela esteja sempre a serviço do bem comum, do respeito à dignidade da pessoa e da integralidade do desenvolvimento humano.
Seus primeiros discursos convidam a Igreja a escutar as dores do povo, a dialogar com outras tradições e a discernir com coragem. O Papa tem chamado atenção para a importância de se considerar sempre a perspectiva dos pobres e excluídos, reconhecendo neles os verdadeiros protagonistas da transformação social e da atualização da DSI.
Sua eleição e a escolha do nome Leão XIV são amplamente vistas como um tributo ao legado de Leão XIII, reafirmando o compromisso da Igreja com a missão social do Evangelho. Seu pontificado promete ser marcado por uma firme busca de uma sociedade mais justa, fraterna e pacífica, alicerçada na fé cristã e nos ensinamentos da tradição social da Igreja.
Falar de Doutrina Social da Igreja é falar de esperança, mas também de responsabilidade. É reconhecer que a fé não se fecha em templos, mas se projeta sobre a história. Como afirmava Leão XIII no século XIX e como reforça Leão XIV hoje, a missão da Igreja passa também pelo cuidado com a casa comum, com o trabalhador, com os pobres e com todas as estruturas que devem servir à vida. Diante de tantos desafios, a Doutrina Social da Igreja continua sendo um farol que ilumina e provoca: para onde estamos caminhando e o que estamos fazendo com os nossos irmãos e irmãs? A resposta, como sempre, está no Evangelho encarnado através de ações concretas que transformam a vida social.