A exploração do trabalho infantil ainda é uma realidade e precisa ser denunciada para que todas as crianças e os adolescentes tenham o direito à infância, a crescer e a desenvolverem-se integralmente.
A Constituição Federal Brasileira, no seu artigo 227, determina que família, sociedade e Estado devem assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de protegê-los de qualquer forma de violência, discriminação ou exploração, mas, no Brasil, somente em 2023 perto de 1,6 milhão de crianças estava em situação de trabalho infantil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso representa 4,2% do total de crianças do país e mostra como o tema deve ser amplamente tratado para que essa prática seja banida e 100% das crianças brasileiras tenham direito a uma infância plena.
“O trabalho infantil no Brasil está profundamente enraizado em nossa história, resultado de uma herança colonial e escravocrata que, por séculos, naturalizou a exploração da mão de obra de crianças, especialmente indígenas e negras. Apesar dos avanços legais conquistados nas últimas décadas, que proíbem o trabalho de adolescentes com menos de 16 anos (exceto na condição de aprendiz a partir dos 14), a prática ainda persiste”, disse, em entrevista à reportagem, a jornalista Roberta Tasselli, que integra a direção colegiada da Cidade Escola Aprendiz.
Ela observou ainda, a questão racial, pois, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, 65,2% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são pretos ou pardos, proporção superior à sua presença na população total de 5 a 17 anos, que é de 59,3%.
“Esse dado escancara os efeitos do racismo estrutural que molda e ainda sustenta a sociedade brasileira e cujas consequências se traduzem, por exemplo, na naturalização do trabalho infantil de crianças e adolescentes negros”, ressaltou Roberta, que também é membro do Conselho Gestor da Rede Narrativas desde 2019, reforçando sua contribuição para a promoção dos direitos de crianças e adolescentes.
Sobre as possíveis causas de o trabalho infantil ainda não ter sido erradicado no país, ela recordou que a situação é consequência de múltiplas formas de vulnerabilização social como o racismo e a desigualdade de acesso a serviços públicos. “Há ainda uma forte influência de valores culturais que naturalizam o trabalho precoce como uma forma de ‘ensinar responsabilidade’ ou ‘ajudar em casa’, quando na verdade mascaram a negligência do Estado e o desamparo das famílias em situações de exclusão e vulnerabilização social”, completou.
UMA PLANTA MURCHA
“Especialmente na infância, a pessoa não deve entrar na oficina senão quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e morais; do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado precoce e dar-se-á cabo da sua educação”: a citação é do Papa Leão XIII, retirada da Carta Encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891.
O documento, que trata da condição dos trabalhadores, foi citado pelo Arcebispo Gabriele Caccia, observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas durante o diálogo interativo informal intitulado “Infância digna: eliminar o trabalho infantil em todas as suas formas, incluindo o recrutamento forçado e o uso de crianças nos conflitos armados”.
Caccia salientou a proteção dos direitos das crianças, que devem crescer em ambientes que respeitam a dignidade e promovem o desenvolvimento integral e o acesso a cuidados de saúde, à educação e a oportunidades de crescer e contribuir socialmente.
NÃO CALARÃO NOSSA VOZ
A Pastoral do Menor está com uma campanha para a prevenção e a denúncia de casos de trabalho infantil e tem desenvolvido um trabalho importante para chegar a todas as pessoas com a mensagem.
Em entrevista à reportagem da Revista Ave Maria, Marilda Lima, coordenadora nacional da Pastoral do Menor, recordou que a pastoral carrega de Dom Luciano Mendes de Almeida – que faleceu em 2006 – o legado missionário e está presente em territórios com muitas adversidades, seja nas cidades grandes, seja nas mais distantes: “Atuamos em locais indesejados por muitos, como as unidades de internação dos adolescentes. Vamos aprendendo a nunca nos calar diante das injustiças aos pequenos, fazendo com que suas vozes sejam ouvidas”.
Marilda é incansável na defesa das crianças e salienta: “Enquanto houver uma criança, um adolescente sem teto, sem pão, sem dignidade, os agentes da Pastoral do Menor estarão presentes”.
A pastoral, com atuação nacional, tem como principal objetivo buscar uma resposta transformadora, global, unitária e integrada à situação da criança e do adolescente empobrecidos e em situação de risco pessoal e/ou social, promovendo a participação deles como protagonistas.
A CONVIVÊNCIA FAMILIAR É UM SUPERDIREITO
Sávio Bittencourt é procurador de justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro e junto à sua esposa, Bárbara Toledo, é coordenador do Setor de Casos Especiais da Pastoral Familiar, em nível nacional. Ele é pós-doutorado em Direitos Humanos e mestre em Direito da Criança, da Família e das Sucessões, além de presidente da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
“Quando há casos de trabalho infantil e violência doméstica, temos que pensar na identificação da situação e no encaminhamento para as autoridades cabíveis. A orientação é que acionemos sempre o Conselho Tutelar e o Ministério Público”, explicou.
Sávio recordou que, embora a maior parte dos casos aconteça quando há comprometimento financeiro, há muitas famílias que exploram as crianças no TikTok ou em outras redes sociais: “Em alguns casos, a criança para, inclusive, de ir à escola, ou seja, não acontece somente com famílias em dificuldades financeiras”.
Sobre a cultura do trabalho familiar, que ainda existe em muitas regiões do país, ou seja, aquelas situações em que a criança trabalha junto com a família, o Procurador explicou que é preciso agir de forma pedagógica e, se não houver resposta positiva da família, é preciso, igualmente, acionar as autoridades.
“Nem sempre, a família é vilã. Pode ser uma questão cultural, mas, ainda assim, é preciso agir, para garantir às crianças o direito à educação e o direito à infância”, afirmou Sávio.
A ATUAÇÃO DA CIDADE ESCOLA APRENDIZ
A organização Cidade Escola Aprendiz também tem colaborado ativamente na construção de políticas públicas em diferentes regiões do país. Em Marabá, no Pará, há um projeto que articula ações de apoio a famílias de crianças e adolescentes, com atenção especial às chefiadas por mulheres negras em situação de pobreza multidimensional.
Em São Paulo (SP), a Cidade Escola Aprendiz integra ativamente o movimento Criança de Rua Tem Pressa, que teve papel fundamental na mobilização pela sanção da Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e na Rua (lei 17.923/23). Além disso, a organização também integra o Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e a Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Infantil.
Roberta explicou que as consequências do trabalho infantil são múltiplas e se manifestam em diferentes dimensões da vida da criança: “Do ponto de vista físico, o trabalho precoce expõe meninos e meninas a esforços incompatíveis com seu desenvolvimento corporal, muitas vezes em ambientes insalubres e perigosos. Já do ponto de vista emocional e psicológico, o impacto é igualmente grave: crianças que trabalham tendem a apresentar níveis mais altos de estresse, ansiedade e baixa autoestima, comprometendo seu bem-estar e sua autoestima”.
PREVENÇÃO É SEMPRE O MELHOR CAMINHO
Sobre a prevenção de casos, Sávio explicou que “Numa família funcional, mesmo com problemas, as crianças são protegidas. Quando essa família inexiste, temos que ajudar a ampliar a rede ou, em último caso, retirá-la para prover uma família, por meio da adoção. Isso porque o direito à convivência familiar é um superdireito e, a partir dele, todos os outros direitos são garantidos”.
Roberta, por sua vez, recordou que as escolas, por exemplo, são espaços privilegiados de escuta e identificação de situações de trabalho precoce: “Não cabe a elas substituírem a assistência social, mas se reconhecer como porta de acesso à rede de proteção social. Educadores bem-preparados podem acolher e encaminhar casos de violação, além de fomentar uma cultura escolar que valorize os direitos da infância”. E continuou: “Outros espaços sociais também têm papéis importantes. Igrejas, com sua capilaridade, podem sensibilizar comunidades para a proteção integral. Coletivos de esporte e cultura oferecem alternativas de desenvolvimento, fortalecendo o pertencimento e o protagonismo juvenil. Empresas, ao cumprir a legislação e ofertar vagas de aprendizagem, contribuem com a inclusão produtiva protegida de adolescentes. Até mesmo shoppings centers, como citamos anteriormente, podem se engajar nesse esforço. Cada ator que reconhece as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos contribui para romper com o ciclo do trabalho infantil”.