Estimado(a) leitor(a) da Revista Ave Maria, começo nossa reflexão mensal de abril sobre a Páscoa do Senhor Jesus Cristo desejando uma santa Páscoa.
A partir de Hebreus 9,1-28 confrontam-se as duas expiações: a do Yom Kippur e a do Calvário. O sangue é um dado central em ambas. Sem ele, quase nada é remido: (cf. Hb 9,22). Essas considerações devem ser enriquecidas pelo que diz Paulo: “Tudo o que foi escrito no passado o foi para a nossa instrução, para a nossa esperança” (Rm 15,4). Agora, para clarear e evidenciar o confronto existente entre as duas expiações, apresentamos, em paralelismo antitético, o que é dito em Hebreus 9,1-28, texto que deve ser conhecido.
O confronto entre o dia da grande purificação judaica e o da grande purificação cristã (Calvário) mostra que entre elas há muito em comum, mas que há também muita discrepância. Nessas datas o sangue se faz presente, mas de modos diferenciados. Na primeira aliança ele procedia de muitas vítimas que eram imperfeitas; os animais “ignoravam” o que lhes acontecia, não participavam “conscientemente”. Com isso, a maioria dos judeus descambou num ritualismo: pela simples oferenda do sangue da vítima, imaginavam que o transcendental aconteceria automaticamente. Não se exigia maior envolvimento, quer do sumo sacerdote, quer do povo.
Na nova aliança também houve o derramamento de sangue e nem poderia ser diferente. Todavia, o sangue era divino. Anteriormente, a vítima aceitou, amorosa e plenamente, assumir o sacrifício. Isso deu sentido ao que poderia ser considerado como um mero rito exterior, sem a essencial conotação de sua interioridade.
Todavia, para que o projeto divino se concretizasse no tempo, necessário se fazia que o Verbo assumisse um corpo para a grande imolação, uma vez que os holocaustos e os sacrifícios do Antigo Testamento tinham sido rejeitados. Por isso, o entrar no mundo do Verbo.
Então, antes de tudo, Ele aceitou a “imolação interior” em prol da humanidade carente, fazendo-se “(…) solidário com seus irmãos, tornando-se o sumo sacerdote misericordioso e fiel (…). Para expiar os pecados do povo” (Hb 2,17). Com isso, diferentemente do que acontecia com os judeus, o derramamento do sangue de Jesus não foi um mero rito, mas um holocausto previamente assumido e plenamente eficaz, portanto, fica claro que a “eficacidade” da redenção não se baseia tanto nos sofrimentos de Cristo, mas no seu amor por eles manifestado. Evidenciou-se que o Pai não era como as iradas divindades pagãs que só se aplacavam ao serem saciadas com carne e com sangue a elas oferecidas. Compreendeu-se que a redenção continua acontecendo só quando há o amor, a solidariedade e o serviço íntegros como aconteceu com Jesus.
Fica claro como, para Paulo, como na cruz o Senhor se fez “propiciatório” (cf. Rm 3,25). “Propiciatório” (instrumento de propiciação) era a rica cobertura da Arca da Aliança. Nas purificações (Yom Kippur), ele era aspergido diretamente pelo sumo sacerdote (cf. Ex 25,17-22). Quando dos sacrifícios para o perdão dos pecados, aspergia-se o véu que o ocultava. Materialmente falando, ele era muito mais rico que a arca. Detalhe importante: nele Javé se fazia presente e, de lá, comunicava-se com o povo. Então, no dia da grande purificação, ao se borrifar com sangue o propiciatório, praticamente era a Deus quem se aspergia.
Mas, para Paulo, o verdadeiro propiciatório é o Deus conosco crucificado que, na purificação definitiva e universal, proclamou: “Eis que venho para fazer a tua vontade” (Hb 10,5-10). Asperge com o próprio sangue e, com ele, também o povo (cf. Rm 3,25). Esse propiciatório, porém, não ficou oculto aos olhos do mundo. Por meio desse amor manifesto na cruz o Senhor atrairia todos a si (cf. Jo 12,32). O antigo propiciatório era, então, um “tipo”, uma figura. O atual é o “antitipo”, o figurado, o real; é o Deus na cruz que acolhe com seu perdão. Por isso, o velho propiciatório, com a morte do Senhor, foi “profanado”, ficou exposto (cf. Mc 15,38).
Remidos e santificados pelo sangue tão generosamente por nós derramado (cf. Ef 1,7), devemos beber do cálice da bênção, na comunhão do sangue do Senhor (cf. 1Cor 10,16). A passagem se refere à Eucaristia. Todavia, essa comunhão externa exige comungar o que, pelo seu sangue, Cristo operou por nós e como Ele o fez. O pão e o cálice devem, respectivamente, ser comido e bebido salvificamente (cf. 1Cor 11,27ss) para a formação da comunidade dos eleitos (cf. 1Cor 10,16ss), o que implica o maior espírito de solidariedade de todos para com todos. Pelo seu sangue, Cristo revela tanto o seu amor como o do Pai em favor da humanidade (cf. Rm 5,8-11). Esse amor revelado, e que acatamos, deve ser sempre, e cada vez mais, vivenciado e se tornar fonte de apostolado, portanto, vivenciado, partilhado, concretizado.
Essa é a missão de todos os que assumiram a paixão, morte e ressurreição: abrir-se, solidariamente, a todos os irmãos e irmãs, numa solidariedade que implica a oblação e o serviço, como Cristo o fez. Isso é fazer memória da paixão, manifestada pelo preciosíssimo sangue. Dessa maneira, o Crucificado continuará sendo o propiciatório salvífico em prol da humanidade.