Estimado(a) leitor(a) da Revista Ave Maria, começo nossa reflexão mensal com a pergunta que toca nosso coração após um longo período de privações, enfermidades, mortes, fomes e injustiças sociais: ainda é preciso viver um tempo de conversão e preparação? Não vivemos no período pandêmico essa conversão?
A espiritualidade da Quaresma aparece em seu caráter essencialmente cristocêntrico-pascal-batismal. Esse tempo litúrgico é caminho de fé-conversão para Cristo, que se faz servo obediente ao Pai até a morte na cruz. O Crucificado torna-se sinal de purificação por meio do sangue e da água que jorram do lado aberto dele, como doação total à vontade de Deus Pai.
A Quaresma é o tempo favorável para a redescoberta e o aprofundamento do autêntico discípulo de Cristo.
Não se conhece Jesus estando do lado de fora, mas por meio da partilha de vida: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mc 8,34). A conversão cristã, a metanoia evangélica, não é simplesmente uma conversão moral – embora a exija –, mas é conversão para Deus, como se revela nas escolhas messiânicas de Cristo (cf. Mt 4,1-11), pois, do contrário, não se pensa segundo Deus, mas segundo os homens (cf. Mt 16,21-23).
A espiritualidade da Quaresma é caracterizada também por uma atenção em relação à escuta prolongada da Palavra de Deus, pois é ela que ilumina o conhecimento dos próprios pecados, chama à conversão e infunde confiança na misericórdia de Deus. O exame de consciência cristão não é um fechar-se em si, mas um abrir-se para a palavra da salvação, para a vida nova entregue a todos nós na cruz. Acreditamos que essa é a chave da Quaresma em 2022, sobretudo no abrir-se às novas exigências e realidades humanas preestabelecidas durante o período pandêmico.
A Quaresma pós-pandemia tem um caráter todo peculiar neste período, leva-nos a viver com mais intensidade e profundidade a relação interpessoal com Deus; leva-nos a sentir a compaixão dele em relação a nossos pecados; olhamos para Cristo crucificado e iluminados pelo desejo de esperança nos sentimos amados(as) e acolhidos(as) em nossas limitações humanas, a acolhida oferecida na cruz; criamos em nós alguns movimentos cristãos de mergulho e de entrega, ou seja, somos convidados(as) a mergulhar nesse mar de amor, de conversão e de entrega de nós mesmos em vista de uma vida inteiramente voltada para o Sumo Bem, Deus.
O caráter original da Quaresma, conforme a força expressiva da própria palavra, foi colocado na penitência de toda a comunidade e dos indivíduos, prolongada por quarenta dias. Na determinação dessa, a fim de que os cristãos se preparem para celebrar a solenidade pascal, é mais do que certo que teve grande peso a tipologia bíblica dos quarenta dias, isto é, o jejum de quarenta dias de Nosso Senhor, Jesus Cristo; os quarenta anos transcorridos pelo povo de Deus no deserto; os quarenta dias em que Moisés esteve no monte Sinai; os quarenta dias em que Golias, o gigante filisteu, desafiou Israel até que Davi avançou contra ele, abateu-o e o matou; os quarenta dias durante os quais Elias, fortificado pelo pão cozido sobre as cinzas e pela água, chegou ao monte de Deus, o Horeb; os quarenta dias nos quais Jonas pregou a penitência aos habitantes de Nínive.
A Quaresma de 2022 é sinal de esperança para a Igreja, sobretudo dentro da dinâmica da sinodalidade proposta pela Santo Padre, o Papa Francisco; é tempo do recomeço para as famílias, sobretudo para as que perderam seus familiares para o novo coronavírus, portanto, é tempo da grande convocação de toda a Igreja para que se deixe purificar por Cristo, seu esposo. Nesse sentido é significativa a leitura do profeta Joel 2,12-18 na Quarta-feira de Cinzas. Enquanto Cristo, santo, inocente, sem mancha (cf. Hb 7,26), não conheceu o pecado (cf. 2Cor 5,21) e veio para expiar os pecados do povo (cf. Hb 2,17), a Igreja, que traz pecadores em seu seio, que é santa, mas sempre necessitada de purificação, nunca deixa, sobretudo neste tempo, de fazer penitência e de se renovar (cf. constituição dogmática Lumen Gentium, 8). A Igreja não só chama os homens à penitência mediante o anúncio do Evangelho, mas intercede também pelos pecadores. Ela se torna instrumento de conversão e de perdão, sobretudo no Sacramento da Penitência.
Portanto, a Quaresma de 2022 deve criar um movimento de perdão ao povo de Deus e motivá-lo à esperança, à caridade como ação concreta ou como manifestação da conversão obtida, que responde à Palavra de Deus e ajuda a agir com o Espírito Santo. Por isso, a Quaresma é o grande tempo de conversão da Igreja, de modo que todos os fiéis tenham oportunidade de reconciliar-se consigo mesmos e com os irmãos e irmãs para, em seguida, renovados no Espírito, celebrar com dignidade de filhos(as) o Tríduo Pascal do Senhor morto e ressuscitado.