QUEM FOI DOM PAULO EVARISTO ARNS, O ARCEBISPO DE SÃO PAULO QUE, EM PLENA DITADURA, NÃO TEVE MEDO DE LUTAR EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS E CONTRA OS ABUSOS DO REGIME MILITAR
A jornalista Evanize Sydow tinha 19 anos quando conheceu Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016). Foi em 1994, durante uma coletiva de imprensa. Saiu da entrevista tão encantada com a história daquele frade franciscano que, já no dia seguinte, propôs a Marilda Ferri, colega de turma do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo (SP), escrever uma biografia. “Sobre quem?”, perguntou a amiga. “Dom Paulo!”, respondeu a estudante. Convite aceito, tentaram marcar um encontro com o então arcebispo de São Paulo.
Depois de alguns meses de espera, a audiência foi agendada. Na cúria, fizeram a proposta. “Acho que vão perder seu tempo”, respondeu o líder católico. “Tanta gente interessante por aí e vão escrever logo sobre mim? Sou tão sem graça…”, explicou. “Dom Paulo era uma pessoa amorosa e bem-humorada que tinha sempre uma piada ou um causo para contar”, recorda Sydow, coautora de Dom Paulo Evaristo Arns: um homem amado e perseguido (1999).
“Era intransigente na defesa dos direitos humanos. Não se calava nem fugia à luta diante de uma injustiça”, diz ela.
Esse cardeal amoroso e brincalhão, arcebispo emérito da Arquidiocese de São Paulo, morreu há exatos cinco anos, no dia 14 de dezembro de 2016. Tinha 95 anos – 76 deles dedicados à vida religiosa – e estava internado com broncopneumonia. O “cardeal da esperança”, como ficou nacionalmente conhecido, morreu às 11h45, de falência múltipla dos órgãos. Em nota, o arcebispo Dom Odilo Scherer lamentou sua morte: “Entregou sua vida a Deus, depois de tê-la dedicado generosamente aos irmãos”.
Paulo Evaristo Arns nasceu em Forquilhinha, a 212 quilômetros de Florianópolis (SC), em 1921. Se estivesse vivo, teria completado 100 anos no último dia 14 de setembro. Seu centenário foi celebrado pelo Senado Federal, Câmara dos Deputados e Supremo Tribunal Federal. No Senado, a sessão em sua homenagem contou com as presenças do senador Flávio Arns (Podemos-PR), sobrinho do religioso, e da vice-presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), a presbítera Anita Sue Wright, filha do pastor presbiteriano Jaime Wright (1927-1999).
Juntos, Dom Paulo, Jaime Wright e o rabino Henry Sobel (1944-2019) coordenaram, de 1979 a 1985, o projeto Brasil: nunca mais, que deu origem ao livro homônimo e que denunciou a violência cometida durante os 21 anos de ditadura no país e, até hoje, é considerado um dos mais importantes registros dos crimes praticados pelo regime militar. “Sem o acolhimento do Grito dos Excluídos, jamais superaremos as desigualdades”, declarou o senador.
Durante a sessão, Anita Wright destacou a realização, em 31 de outubro de 1975, de um culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), diretor de Jornalismo da rede de televisão TV Cultura, barbaramente torturado e morto por agentes da repressão no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), em São Paulo. A versão de suicídio não convenceu Dom Paulo. A celebração reuniu 8 mil pessoas e se transformou na maior manifestação pública de repúdio à ditadura. “A Catedral e a Praça da Sé estavam lotadas”, lembrou Wright, “e o povo, cercado por policiais fortemente armados”.
A Câmara dos Deputados também prestou homenagem ao centenário de Dom Paulo. A deputada Luiza Erundina (PSOL-SP) lembrou que ele aproximou a igreja da sociedade ao lutar em defesa das populações mais vulneráveis: “Como arcebispo de São Paulo, colocou o poder que a Igreja lhe conferiu a serviço da resistência e da defesa da democracia”. Já o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Joel Portella Amado, afirmou que o arcebispo emérito de São Paulo se tornou um ícone da defesa dos desamparados e dos perseguidos: “Sempre tratou a todos com respeito, particularmente quem pensava diferente dele”.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal também prestaram homenagem. Numa sessão, Dias Toffoli comparou o cardeal a um guerreiro que lutou incansavelmente para erradicar a pobreza, reduzir a desigualdade e promover o bem comum: “Um homem de ação e, acima de tudo, um exemplo que deve continuar a inspirar todos nós”.
O “HOMEM SEM MEDO”
Quinto dos treze filhos de um casal de imigrantes alemães, Gabriel Arns e Helena Steiner, Dom Paulo Evaristo Arns ingressou no seminário franciscano em 1939, aos 18 anos. Cursou Filosofia em Curitiba (PR) e Teologia em Petrópolis (RJ). Foi ordenado padre em 30 de novembro de 1945, aos 24 anos, e bispo em 3 de julho de 1966, aos 45. Nas horas livres, gostava de ouvir Mozart e torcer pelo Corinthians. Poliglota, falava sete línguas, como alemão, grego e hebraico. Como escritor, lançou 57 livros – entre eles os autobiográficos Da esperança à utopia: testemunho de uma vida (2001) e Corintiano graças a Deus (2004).
“O principal legado de Dom Paulo é a evangelização. Ele era, e fazia questão de ser, sobretudo, um padre”, afirma Antônio Carlos Fester, autor de Justiça e paz: memórias da comissão de São Paulo (2005). “As memórias e as saudades são muitas e fortes. Foi perseguido das mais diferentes formas, inclusive dentro da própria Igreja. Dom Paulo faz falta. Muita falta”, acrescenta.
No dia 22 de outubro de 1970, Dom Paulo Evaristo Arns foi promovido a arcebispo de São Paulo pelo Papa Paulo VI. Três anos depois, vendeu o palácio episcopal por 5 milhões de dólares e mudou-se para uma casa mais simples no Sumaré. Com o dinheiro, mandou construir 1.200 centros comunitários na periferia de São Paulo. Exerceu o cargo até 22 de maio de 1998, quando completou 75 anos. Foi substituído pelo arcebispo Dom Cláudio Hummes e virou arcebispo emérito. Como cardeal, cujo lema era “De esperança em esperança”, participou de dois conclaves: os que escolheram os papas João Paulo I (1912-1978), em agosto de 1978, e João Paulo II (1920-2005), dois meses depois.
Ao longo de sua trajetória, ganhou projeção por sua luta em defesa dos direitos humanos e a favor do voto na campanha Diretas já. Presidiu importantes celebrações na Catedral da Sé em memória de vítimas da ditadura, como o líder estudantil Alexandre Vannuchi Leme (1950-1973), em 30 de março de 1973, e atuou contra a invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), comandada pelo então secretário de Segurança, o coronel Erasmo Dias, em 22 de setembro de 1977. “Dom Paulo tinha acabado de voltar de Roma e, quando soube da invasão, correu para a PUC. Disse ao coronel Erasmo Dias que só se entra na universidade quem passa no vestibular ou é convidado”, relata Padre Ney de Souza, professor de Teologia da instituição que, quando tinha 12 anos, participou do culto ecumênico em memória de Herzog e, aos 25, recebeu a ordenação presbiteral das mãos de Dom Paulo.
Foi para denunciar esses e outros abusos que criou, em 1972, a Comissão de Justiça e Paz. Entre outras iniciativas, abriu as portas da Igreja para proteger os perseguidos e acolher suas famílias. Ao lado da irmã, a médica Zilda Arns (1934-2010), apoiou a criação de cinco pastorais: da Criança, da Pessoa Idosa, do Povo da Rua, da Operária e de DST/AIDS. “A lembrança mais forte que guardo dele foi quando, por ocasião da morte do operário Santo Dias da Silva (1942-1979), conduziu uma marcha pelas ruas da cidade levando seu caixão até o cemitério”, afirma o advogado José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns, em alusão ao membro da Pastoral Operária que foi morto pela Polícia Militar quando liderava uma greve.
Incansável, lutou em favor das vítimas da ditadura em outros países sul-americanos, como Chile, Uruguai e Argentina. Certa vez, em visita ao Paraguai, durante o governo de Alfredo Stroessner (1912-2006), foi recebido pelo vice do ditador no aeroporto de Assunção. “Em que podemos atendê-lo?”, perguntou o político. “Soltem os presos políticos!”, respondeu o religioso, sem titubear.
“Não tenho dúvida de que, se estivesse vivo, Dom Paulo seria um opositor do atual governo brasileiro. Conhecido por sua luta pelos direitos humanos e por estar sempre ao lado das causas sociais, seria contrário a toda e qualquer pauta de extrema direita que prega violência, racismo ou homofobia”, afirma o historiador Paulo César Gomes, de Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira (2014).