O Evangelho segundo Lucas apresenta uma das mais profundas e comoventes preocupações sociais entre os escritos do Novo Testamento. Nele, a figura de Jesus emerge como aquele que se aproxima dos pobres, dos marginalizados, das mulheres e dos pecadores com uma compaixão concreta, libertadora e chocante para a lógica religiosa e social de seu tempo. Em diversas passagens, percebe-se que Lucas constrói uma narrativa marcada pela inversão das hierarquias humanas, convidando os discípulos a uma espiritualidade enraizada na justiça, na solidariedade e na dignidade humana, para a vinda do Reino de Deus: “Há últimos que serão os primeiros, e há primeiros que serão os últimos” (Lc 13,3).
Duas parábolas emblemáticas ilustram esse traço constitutivo: a do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37) e a do rico e Lázaro (cf. Lc 16,19-31). Na primeira, a verdadeira piedade é atribuída ao samaritano, alguém socialmente excluído pelo judaísmo oficial, que se torna modelo de misericórdia ao cuidar da vítima abandonada à beira do caminho. O texto nos desloca da religião meramente ritualista para uma espiritualidade do cuidado e da proximidade. A ação do samaritano aponta para um amor que ultrapassa fronteiras étnicas, religiosas e sociais, configurando-se como expressão da compaixão divina.
Na parábola do rico e Lázaro, Lucas apresenta um rico indiferente e um pobre abandonado à porta. O abismo que os separa na vida é perpetuado após a morte, revelando que a justiça divina considera não apenas as intenções, mas também a responsabilidade dos que têm recursos e os usam unicamente para si. A crítica à riqueza injusta é uma constante no terceiro Evangelho (cf. Lc 6,20-26; 12,13-21), que, ao mesmo tempo, exalta os humildes e os famintos, numa clara alusão ao Magnificat (cf. Lc 1,46-55), no qual Maria proclama que Deus “derruba do trono os poderosos e eleva os humildes”.
No Evangelho de Lucas, o seguimento de Jesus é apresentado como um caminho que exige romper com atitudes de fechamento e autossuficiência, abrindo-se ao encontro verdadeiro com o outro, especialmente com quem sofre privações, é marginalizado ou tem sua dignidade ferida. Mais do que um sentimento de compaixão, trata-se de uma exigência profunda do Reino de Deus, que se concretiza na prática da partilha, no exercício da hospitalidade e na inclusão de todos. Dessa forma, a comunidade inspirada pela mensagem lucana é chamada a tornar-se sinal concreto de uma nova realidade social e espiritual, visível em gestos de misericórdia, no cuidado com os mais vulneráveis e no compromisso de combater as injustiças e desigualdades.
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco reafirmou: “Quero uma Igreja pobre para os pobres. Eles têm muito a ensinar-nos. Além de participar do sensus fidei, nos seus próprios sofrimentos conhecem o Cristo sofredor” (198). Essa perspectiva não é um acessório da fé, mas parte constitutiva do Evangelho.
A espiritualidade que permeia o Evangelho de Lucas permanece como apelo vivo à Igreja contemporânea. Ela exorta a cultivar um olhar moldado pela mensagem evangélica, atento ao clamor dos pobres, aberto à acolhida dos excluídos e firmemente empenhado na construção de uma sociedade justa, na qual o amor se traduza em gestos concretos de solidariedade.
Referências bibliográficas
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KASPER, Walter. Jesus, o Cristo. São Paulo: Paulinas, 1981.
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WERBINSKI, Waldemar. Evangelho segundo Lucas. São Paulo: Ave-Maria, 2006.