Neste ano, o Evangelho seguido na liturgia é o do evangelista Marcos. O texto de 8,27-35 ocupa um lugar central e decisivo no relato dele. Jesus continua ensinando que aqueles que desejam segui-lo devem negar a si mesmos, tomar a cruz e segui-lo. Ele enfatiza a importância de renunciar aos próprios desejos e vontades e estar disposto a sofrer por causa do Evangelho. Ao mesmo tempo, Jesus assegura que aqueles que perdem suas vidas por amor a Ele e ao Evangelho encontrarão a vida eterna. Esse trecho destaca a centralidade da cruz na vida do discípulo de Jesus e a necessidade de renúncia e entrega total a Ele.
Os discípulos já convivem com Jesus há algum tempo. Chegou a hora em que eles devem falar claramente. A quem de fato eles seguem? O que descobrem em Jesus? O que entendem de sua vida, sua mensagem e seu projeto? Eles vivem se questionando sobre sua identidade. O que mais lhes surpreende é a autoridade com que Jesus fala, a força com que cura os enfermos e o amor com que oferece o perdão de Deus aos pecadores. Quem é esse homem que sentem tão presente e tão próximo de Deus como amigo da vida e do perdão?
O texto de Marcos 8,27 começa com uma longa instrução de Jesus aos seus discípulos, que continua até 10,45. Tanto no início como no fim dessa instrução, Marcos situa a cura de um cego em 8,22-26 e 10,46-52. No início, a cura do cego requereu dois momentos ou etapas para a realização da cura definitiva. Não foi fácil a cura da cegueira dos discípulos. Jesus teve que dar uma longa explicação sobre o significado da cruz para ajudá-los a entender um pouco, pois foi a cruz que causou sua cegueira. No fim, a cura do cego Bartimeu, fruto da fé em Jesus, sugere como deve ser a fé do discípulo: acreditar em Jesus e aceitá-lo como ele é, não como o quero e imagino. Nos anos 70, quando Marcos escreveu seu Evangelho, a situação da comunidade não era fácil. Havia muita dor, eram muitas as cruzes. No ano 64, o imperador Nero ordenou a primeira perseguição, matando muitos cristãos. Em 70, Jerusalém estava prestes a ser destruída pelos romanos. A maior dificuldade foi aceitar a cruz de Jesus. Os judeus pensavam que uma pessoa crucificada não poderia ser o tão esperado Messias do povo, pois sua lei estabelecia que quem fosse crucificado deveria ser considerado amaldiçoado por Deus (cf. Dt 21,22-23).
O texto traz o primeiro anúncio da paixão e morte de Jesus aos discípulos, a tentativa de Pedro de eliminar a cruz e o ensinamento de Jesus sobre as consequências da cruz para ser seu discípulo. Pedro não entende a proposta de Jesus sobre a cruz e o sofrimento. Ele aceitava Jesus Messias, mas não como Messias sofredor. Pedro pensava, como outros do seu tempo, que o Messias deveria de ser um rei glorioso. Pedro parecia cego. Hoje muitos creem em Jesus, mas nem todos da mesma forma. Quem é Jesus para nós? Qual é a imagem mais comum que as pessoas têm dele hoje? Quem somos nós para Jesus?
Jesus, a caminho de Jerusalém, vai repetir três vezes a mesma coisa: que vai ser entregue e crucificado. Com isso, a história adquire um intenso dramatismo. Jesus é consciente do que poderia acontecer com Ele, mas, apesar de tudo, mantém a decisão de ir a Jerusalém e proclamar com clareza e firmeza seu projeto do Reino de Deus. O relato diz ainda que Pedro, um dos seus discípulos, tentou em privado convencer Jesus a não ir a Jerusalém. A reação de Jesus será forte para com Pedro. Diante de todos, Ele dirá “Afasta-te de mim, Satanás, porque teus sentimentos não são os de Deus, mas os dos homens” (Mc 8,33). É no caminho para Jerusalém, nessa situação de crise, nesse momento de tentação para Jesus, em que se tem de tomar decisões claras, Ele vai explicar o que exige de um dos seus discípulos. Jesus vai falar mais claramente e com muita firmeza. Algumas dessas exigências são “Se alguém me quer seguir, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque o que quiser salvar a sua vida, irá perdê-la; mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, irá salvá-la. Pois que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida? Ou que dará o homem em troca da sua vida?” (Mc 8,34-36).
A cruz não é o desejo do Deus Pai para Jesus ou para qualquer um de nós, seus filhos e filhas. A cruz é consequência do compromisso acolhido livremente por Jesus para revelar a Boa-Nova do Pai. Por anunciar isso, por defender a justiça, os mais pobres e marginalizados, Jesus foi perseguido e assassinado. Tomar a cruz e carregá-la atrás dele significa, portanto, aceitar ser excluído pelo sistema injusto que praticou e ainda hoje pratica a injustiça. Não há amor maior do que dar a vida pelos irmãos, diz o próprio Jesus.