BISPO E DOUTOR
(378-444)
Num período no qual as igrejas cristãs procuravam encontrar uma terminologia adequada para exprimir com clareza a doutrina trinitária, Cirilo, sem dúvida, ofereceu sua contribuição. Na verdade, seguindo com fidelidade o ensinamento de Santo Atanásio, ele defendeu a doutrina, ainda que com métodos nem sempre partilhados pela nossa sensibilidade moderna.
Em geral, no passado, quando se escrevia a vida dos santos, para salientar o desígnio de Deus sobre eles omitiam-se os limites e as incongruências. Hoje se descobriu que mostrar o verdadeiro rosto dos santos, com suas luzes e sombras, muitas vezes devido à cultura de seu tempo, além de ser mais coerente com a linha do Novo Testamento, que não escondeu os defeitos dos mesmos apóstolos, torna o santo mais atraente porque está mais próximo da nossa real condição humana.
Cirilo, durante sua vida, combinou todas as cores. Com o humour típico dos ingleses, o Cardeal Newman escreveu que o bispo alexandrino “não estaria de acordo que sua santidade fosse julgada com base em suas ações”. Mesmo assim foi reconhecido santo primeiramente por seu povo e depois por toda a Igreja, a ponto de ganhar também no Ocidente o título de padre e doutor, mais que pelas virtudes que não lhe faltaram, sobretudo por ter vivido à sombra da santidade de Santo Atanásio, por ter professado com fidelidade a verdadeira fé e por ter escrito tantos livros cheios de sabedoria.
NASCIDO PARA LUTAR
Nasceu em Theodosiou, talvez a atual El Mahalla El Kubra, no Egito, por volta de 378 em uma família que possuía prestígio na comunidade cristã de Alexandria, no mesmo país. Seu tio, de fato, era patriarca dessa Igreja. Quando jovem, parece ter passado por um período de formação com os monges de Nítria, onde foi instruído nas Escrituras e encaminhado para a vida ascética.
A inteligência que demonstrava, a cultura que tinha adquirido e a fidelidade à ascese tornavam-no uma pessoa preciosa para a Igreja de Alexandria. Não tardou e seu tio o retirou do mosteiro e o fez seu braço direito. Já no Conciliábulo de Carvalho (403), em Calcedônia, na atual Turquia, ele estava ao lado do tio, que fez depor da sua legítima sede São João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla.
Depois de alguns anos de treinamento ao lado do tio briguento, sucedeu-o na sede de Alexandria em 412, embora uma parte dos cristãos e dos monges não o aceitasse, o que lhe valeu ter de experimentar a dureza de suas intervenções.
Apenas eleito, compreendeu que seu dever, segundo a mentalidade daquele tempo, seria purificar a Igreja de Alexandria de todo “mau odor” de heresia, de judaísmo e de paganismo. Na cidade havia, já há séculos, um forte estabelecimento dos judeus e entre as duas comunidades nasceu uma profunda discórdia, que levou à destruição também material da colônia hebraica. Havia também uma filósofa neoplatônica, certa Ipazia, que era uma mulher culta e foi encontrada morta por ação de um punhado de cristãos fanáticos. Para os hereges novacianos as coisas não se encaminharam de melhor maneira, porque Cirilo tirou deles a igreja e os reduziu ao silêncio. Os historiadores não reconhecem no bispo o autor material desses delitos, mas certamente seu estilo era o de um inquisidor “ao pé da letra”.
Criou confusão também com o prefeito da cidade, Orestes, mas também este foi calado: em Alexandria mandava Cirilo. O patriarca, com a astúcia de um estrategista, controlava os mosteiros e por intermédio dos monges todo o comércio de grãos da cidade. Qualquer movimento contrário a ele implicava o esvaziamento dos celeiros públicos e ter de suportar a revolta dos monges. Os monges eram milhares, gozavam do favor do povo e se revelavam perigosos, porque dependendo da ocasião sabiam usar melhor o bordão que a cruz. Uma vez desceram quinhentos para uma demonstração contra Orestes e quando este teve a coragem de se apresentar para falar com eles, levou uma pedrada na testa e teve que sair correndo.
A DEFESA DA ORTODOXIA
A controvérsia mais famosa foi aquela que Cirilo sustentou contra Nestório. Já desde os tempos do seu tio o relacionamento com Constantinopla não era bom, também porque, como Roma, ela se preparava para ser considerada a primeira sede patriarcal do Oriente, colocando na penumbra a sede egípcia. O leão de Alexandria, guarda vigilante da ortodoxia de todo o Oriente, examinando alguns escritos de Nestório encontrou neles graves erros de fé.
Nestório, partidário da escola antioquena, na qual foi formado para salvar a integridade da humanidade de Cristo, sustentava que a pessoa divina do Verbo coabitava com a pessoa do homem Jesus, com a consequência de que em Cristo, segundo ele, há duas naturezas e duas pessoas e Maria pode ser chamada só mãe de Cristo e não mãe de Deus.
Cirilo, da escola alexandrina, remontando a Niceia e Santo Atanásio, admitia em Cristo a integridade das duas naturezas – humana e divina –, mas ensinava que estão unidas em uma única pessoa, a do Verbo. Dessa forma, Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mas é uma só pessoa, é Deus feito homem, por isso, quem o gerou na sua humanidade pode ser chamada justamente de mãe de Deus.
Conhecido e muito estimado pela maioria dos bispos do Oriente, Cirilo logo escreveu uma carta ao Papa Celestino para que condenasse Nestório. Também Nestório apelou ao Papa, que em um sínodo romano não aprovou a doutrina de Nestório e encarregou Cirilo, que estava presente no sínodo, de notificar ao interessado.
As coisas se complicaram porque, não satisfeito com a decisão papal que não previa nenhuma excomunhão, Cirilo convocou outro sínodo no Egito e aumentou a dose da condenação de Nestório, provocando grande confusão nas igrejas, então houve intervenção do imperador Teodósio, que convocou um concílio universal em Éfeso no ano 431.
Aproveitando a confiança que gozava perante o Papa e sem aguardar a chegada dos enviados papais e dos bispos do patriarcado de Constantinopla, Cirilo antecipou em alguns dias a abertura da assembléia conciliar ef ez com que Nestório fosse condenado. A condenação começava com estas duras palavras: “A Nestório, o novo Judas”. Quando os enviados do Papa chegaram eles foram postos a par dos acontecimentos e confirmaram a doutrina do concílio. Enquanto isso, os muitíssimos monges que haviam vindo do Egito prepararam o povo e de noite, quando os padres conciliares saíram da assembleia, foram acolhidos por uma multidão entusiasmada que, cantando hinos, levou-os em triunfo pelas ruas da cidade, toda iluminada por uma extraordinária procissão luminosa devido às tochas acesas que levavam.
Os outros bispos retardatários, favoráveis a Nestório, encontrando-se diante de um fato consumado, reuniram-se à parte e excomungaram Cirilo. Logo depois, chegaram os enviados imperiais com uma carta de Teodósio, que comunicava “Confirmamos a deposição de Nestório, Cirilo e Menon, recomendada a nós pela vossa piedade”. Menon era o bispo de Éfeso. A confusão tinha superado todos os limites. Nestório e Menon aceitaram a deposição, mas, Cirilo recusou-a, declarando abusiva a intromissão do imperador na vida interna da Igreja e acabou sendo preso.
Cirilo não era severo apenas com aqueles que ele considerava inimigos da verdadeira fé, mas por essa mesma fé também estava disposto a pagar pessoalmente até as últimas consequências. Do cárcere, ele comunicou: “Nós, pela fé em Cristo, estamos prontos a padecer tudo: sermos acorrentados, sermos levados para o cárcere, todos os incômodos da vida e até a própria morte”. Depois disso, os seus souberam negociar com a corte e obtiveram a sua soltura. O concílio foi considerado válido e Nestório, depois de vicissitudes a favor e contrárias, retirou-se da vida pública para se tornar monge no Egito.
Cirilo, então, começou a perceber que seu modo de agir muitas vezes havia espezinhado a lei da caridade e que possuir a verdade sem a comunhão com Constantinopla e com Antioquia não era vida evangélica. Foi nesse momento que ele pôs em prática o maior ato de humildade que se pudesse pedir dele: reconciliar-se com os seus adversários doutrinais subscrevendo uma profissão de fé que foi denominada “o símbolo de união”.
Cirilo morreu no dia 27 de junho de 444, deixando para a Igreja uma rica produção teológica sobre os mais variados assuntos: desde a exegese bíblica aos tratados sobre a Trindade e sobre a encarnação, da apologética contra Juliano, conhecido como o Apóstata, e homilias sobre a Igreja como corpo de Cristo.
O amor sincero para com a verdade, a vida ascética que marcou toda a sua existência e a condescendência pela reconciliação nos últimos anos levam-nos a admirar muito esse homem que, além de lutar contra outros, precisou combater duramente contra si mesmo.